Múltiplas Vozes

Mergulhando na produção do conhecimento sobre a segurança pública

Se a visão do objeto é diferente em cada perspectiva, por certo será mais rica e esclarecedora a convergência dos múltiplos olhares dos pesquisadores mesclados entre as universidades e os órgãos da segurança pública

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Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto

Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Wilquerson Felizardo Sandes

Coronel da reserva (PMMT), doutor em Educação (Unicamp)

A despeito do incontestável avanço das pesquisas em segurança pública e da crescente produção de conhecimento no campo, no Brasil persistem tensões recíprocas entre universidades e organizações policiais, particularmente quanto à validação do saber produzido, de um lado e de outro.

Em geral, o volume de pesquisas da área é realizado por dedicadas professoras e professores das universidades brasileiras. Trata-se de valiosa contribuição teórica que, nas últimas décadas, principalmente, aclarou importantes questões da segurança pública e ajudou a formar inúmeros operadores enquanto massa crítica qualificada, mas que, na perspectiva de alguns desses mesmos profissionais, vez por outra não alcança as “águas profundas” da realidade prática.

É inegável que na produção de pesquisas sobre a polícia, discentes e orientadores precisam lidar com o dilema de transitar no limiar entre as revelações de pesquisas, os códigos internos e as sanções corporativas formais e informais. Howard Becker notou que os policiais se empenham para esconder o que fazem do conhecimento público. Daí, torna-se imperativo conceber métodos apropriados para o segredo confrontado. Becker bem incentivou pesquisadores a formular novos métodos de maneira que se adequem a seus problemas e aos ambientes estudados.

E se o lugar de pesquisador está mais próximo dos métodos do que do conteúdo propriamente dito, por outro lado, o exercício da atividade policial guarda segredos em regra inacessíveis aos outros.

Em contrapartida, diversas foram as teses e dissertações elaboradas por policiais, peregrinos em programas de pós-graduação stricto sensu de universidades de todas as regiões do país, sob a competente orientação de docentes de diversas áreas do saber, alguns até sem domínio do tema específico, porém com suficiente conhecimento teórico e metodológico e experiência acadêmica para orientar o policial pesquisador na construção correta do projeto, na modelagem do objeto, no exercício do estranhamento, no ajuste do método, na escolha das técnicas e instrumentos de pesquisa e no exame do estado da arte. Policiais pesquisadores que almejam contribuir com a produção de conhecimento em segurança pública, candidatos a escafandristas.

Mas tal alegada capacidade dos pesquisadores policiais de conseguirem mergulhar às profundezas das suas organizações é garantia de que se trará luz a questões do fazer polícia ainda pouco evidentes e mal exploradas?

Decerto que não. Há sempre o risco da intelectualidade orgânica, do corporativo, do ideológico. Entretanto, cabe notar que fazer ciência livre de valores para produzir conhecimento puro, neutro, isento dos preconceitos, condicionamentos históricos e interesses pessoais é mito, que se lança como o grande desafio para todo e qualquer pesquisador e pesquisadora, que traja uniforme ou não.

Enfim, deixando de lado as arestas, o fato é que o êxito das pesquisas realizadas interna corporis em segurança pública possui como condição sine qua non a contribuição de pesquisadores acadêmicos, no mínimo, por duas razões óbvias e conexas. Primeiro, porque apesar do saber prático acumulado das ruas, as polícias ainda engatinham no fazer ciência. Em segundo, o quadro de pesquisadores em segurança pública nativos por ora é escasso.

Nessa direção, uma experiência atual e promissora de aproximação entre órgãos de segurança pública e a universidade merece destaque. Envolve o inovador Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG) — em parceria com o Ministério da Justiça e a Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás (SSP) — que recentemente ofertou uma turma especial de doutorado para 20 profissionais de segurança pública do Estado, por meio de Edital de Seleção Discente nº 021/2020.

O curso de doutoramento é fruto de uma longa trajetória, iniciando no ano de 1999, com o curso de extensão de Direitos Humanos na UFG envolvendo a sociedade civil, a polícia militar e a polícia civil, contando com apoio do Ministério da Justiça e da Unesco. Em 2000, a partir da experiência na extensão, foi realizada a primeira especialização lato sensu em Direitos Humanos na sede da Academia de Polícia Militar de Goiás (APM/PMGO), via parceria com a UFG, também com corpo discente misto entre policiais e sociedade civil.

Ao longo dos anos de parcerias interinstitucionais, vários foram os esforços para viabilizar o curso de stricto sensu em Direitos Humanos para policiais, pensando-os como sujeitos de direitos e protagonistas da própria história. O caminho para a primeira turma de doutorado ofertado aos operadores da segurança pública foi respaldado a partir de uma política nacional de valorização profissional com aporte do Fundo Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e a fundamental colaboração de diversos policiais e professores.

O projeto contemplou a participação, no processo seletivo, de profissionais da secretaria de segurança pública, bombeiros, peritos, policiais civis, policiais militares e policiais penais. A interlocução institucional entre APM, SSP e UFG, para concretização do curso, foi realizada via termo de cooperação, tendo como representantes a capitã policial militar e pesquisadora Tatiane Ferreira Vilarinho, pela SSP, e o professor e sociólogo Ricardo Barbosa de Lima, pela UFG. O doutorado foi desenvolvido em cooperação entre as partes, desde a elaboração do processo seletivo, do projeto de curso, da seleção mista de docentes para orientação e coorientação e da realização de eventos científicos em conjunto.

A parceria exitosa de ensino entre a Universidade de Goiás e as instituições de ensino profissional da Segurança Pública de Goiás perfaz mais de duas décadas, em atividades conjuntas e diálogos. Uma sinergia que rompeu o ciclo de isolamento das instituições e gerou um salto de qualidade na formação dos futuros pesquisadores em segurança pública.

O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH), da UFG, vem ampliando o conhecimento científico e a formação de novos pesquisadores em segurança pública, contribuindo também para fomentar o aprimoramento científico no âmbito das organizações da segurança pública.

A produção e socialização do conhecimento científico do PPGIDH já colhe seus frutos. No início de fevereiro, deste ano, Leonardo Bernardes Melo Cavalcanti – oficial da PMGO que ingressou no programa pouco antes da criação da turma especial – defendeu com sucesso sua tese investigando a atuação policial em Goiás, na metáfora da guerra contra a criminalidade, e se consagrou o primeiro doutor em Direitos Humanos da UFG.

Afinal, se a visão do objeto é diferente em cada perspectiva, por certo que mais rica e esclarecedora será a convergência dos múltiplos olhares, multidisciplinares, em profundez, dos pesquisadores mesclados entre as universidades e os órgãos da segurança pública.

 

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