Margens em disputa: ilegalismos, territórios armados e identidades reivindicadas em conflitos típicos na Amazônia paraense
Desorganização fundiária, violência crua e abandono histórico assolam povos originários e comunidades tradicionais, tensionam a segurança pública e lesam o desenvolvimento sustentável no Vale do Acará
Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto
Membro do Conselho Fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
“Margens em disputa: ilegalismos, territórios armados e práticas militarizadas” é o título da relevante coletânea organizada por Lenin Pires, Elizabete Albernaz e Eduardo Rodrigues, que traz discussões voltadas às imbricações existentes entre mercados de ilegalismos e regulações do mundo social pela violência estatal e não estatal, no Rio de Janeiro. Foi tomado por empréstimo para apresentar conflitos vivenciados no Vale do Acará, entrada da Amazônia paraense, três mil quilômetros distante do Rio de Janeiro, mas, de modo infeliz, presentemente ligado à realidade perversa que aflige cariocas e fluminenses.
A bacia do Acará se localiza no estuário do rio Amazonas, perto de Belém. A abundância dos seus rios, de águas mansas e de fácil navegação, promoveu a ocupação das suas margens por povos originários e, depois, por não indígenas, já nos primórdios da ocupação portuguesa.
Remanescentes dos tupi-guarani habitam o vale desde a segunda metade do século XIX. São provenientes do Maranhão, de onde fugiram da escravização e da catequese jesuítica.
O antropólogo João Paulo Thury alvitra que “quatro frentes de expansão da sociedade não indígena podem ser identificadas como se adentrando e conquistando as terras da bacia do Acará”. A primeira compreende a fundação de entrepostos para a comercialização de escravizados de origem africana, após a proibição pela Coroa do uso forçado de mão-de-obra indígena nos canaviais, em 1729.
A segunda frente teve por base o cultivo da cana-de-açúcar no Grão-Pará, com a concessão de sesmarias ao fim do século XIX. A historiadora Rosa Acevedo Marin nota que a produção canavieira no Acará se desenvolveu articulada às lavouras de mandioca, cacau e algodão. Um campesinato se formou.
A região foi uma das mais povoadas da província. De forte ruralidade e população predominantemente mestiça de matriz indígena e africana. Do predomínio do latifúndio, da pressão por terras, da ocupação ribeirinha das “sobras” e dos quilombos intrincados nas matas. E ainda, anota a historiadora, marcada pelo estalido de uma revolta de cultivadores agregados de fazendas que contestaram o poder dos proprietários “inclusive além do seu mundo”, que a historiografia insere na gesta revolucionária da Cabanagem.
Ao cabo, as frentes coloniais culminaram no aldeamento missionário e na intensa atividade dos regatões que favoreceram epidemias de varíola e, somadas às baixas massivas dos “tapuios” na guerra cabana, dizimaram a população do Acará.
A terceira frente é mais recente. Ocorreu a partir da implantação da colônia nipônica na região, em 1929. Os mais idosos de hoje eram crianças à época e lembram quando os japoneses começaram a receber terras. Nas duas décadas seguintes, indígenas e caboclos foram expropriados e explorados.
A quarta frente foi movida pela extração madeireira, na esteira da colonização japonesa e da abertura de áreas à atividade agrícola. Crimes contra o meio-ambiente restaram impunes. Com a destruição, a fome alcançou os povos da floresta.
Em 1950, outra epidemia – de sarampo – os afligiu tragicamente. Combalida, parte deixou as aldeias. Crianças órfãs foram levadas para serem criadas por famílias não-indígenas. Casamentos interétnicos concorreram para a miscigenação e o apagamento identitário. Mais tarde, notadamente após a abertura política, começariam a se organizar em defesa da identidade etnocultural e de suas terras. As comunidades remanescentes quilombolas idem.
Cogitando além do diagnóstico de Thury, há duas outras frentes em curso no Vale do Acará, fundadas na nova economia agrícola. A quinta frente tem por base o agronegócio do dendê (Elaeis guineensis), iniciado em 1985 e com grande expansão em razão das excepcionais condições edafoclimáticas. Sob o estímulo de políticas públicas, a égide do desenvolvimento regional sustentável e o impulso do mercado, rapidamente o Pará galgou o posto de maior produtor nacional.
No intuito de evitar danos às florestas, à biodiversidade e às populações locais, desde 2010 o cultivo foi restringido às áreas degradadas, com proibição do desmatamento. Não obstante, a monocultura da palmeira oleaginosa africana no Vale do Acará é apontada como causadora de impactos socioambientais às populações que vivem na circunvizinhança das plantações.
A concorrência desleal entre empresas do agronegócio sustentável e os atritos de algumas com comunidades tradicionais e indígenas acirraram na Pandemia de COVID-19, quando o óleo de dendê alçou o maior valor no mercado global de commodities.
O “pré-sal verde” atiçou a cobiça de empresários, de criminosos e de pessoas vulneráveis. Incitou episódios de violência e processos judiciais. Tendo sempre à frente alguém indígena e/ou quilombola, fazendas de dendê foram invadidas sob a alegação – de forte apelo social – da “retomada do território ancestral”; a bem dizer, apenas as plantações.
Sem precedentes, até 2022 não se roubava dendê. Tudo indica que a economia milionária do mercado de ilegalismos que amarga a dendeicultura foi acaudilhada e segue impulsionada por industriais da região, que subterraneamente compram o fruto sem procedência lícita, desrespeitando a fiscalização da produção agrária, e depois vendem o óleo processado sem nota fiscal, burlando a tributação estatal.
Se “em tempos de murici, cada um cuida de si”, quinhões embolsados com a ilicitude bastaram para aliciar lideranças e enfraquecer a luta coletiva legítima por demarcação e expansão de territórios. De uma hora para outra, indivíduos saltaram da condição econômica precária para uma vida extravagante, caracterizada pelo forte consumismo de artigos de luxo, viagens internacionais, passeios de helicóptero e em jatos particulares, aquisição de automóveis e imóveis comerciais e residenciais de padrão elevado. Também drogas e armas.
Cidadanias indígena e quilombola germinaram como nunca. “Imprópria, oportunista e ornada com artesanato comprado na feira”, denunciam líderes mais velhos. Nada de FUNAI, de Palmares, nem de ambientalismo.
Não tardou para que eclodissem conflitos por frutos, em razão do extrativismo desenfreado sem o devido manejo agrícola. Caciques jovens se tornaram poderosos com o apoio de milicianos. Do lado dos quilombolas, faccionados do Comando Vermelho estearam novos líderes. Os territórios armados travaram guerras e o cometimento de crimes violentos culminou em prisões.
A sexta frente resulta desse conflito. A prisão de milicianos deu ensejo à presente expansão territorial do CV que, sob ordens emanadas dos morros do Rio de Janeiro, já ocupa boa parte das áreas invadidas e agora assola a todos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, campesinos, empregados e empresários. Tensionam as forças da segurança pública no campo e na cidade.
Os processos históricos de produção agrícola e acumulação do capital e as práticas de degradação humana e espoliação da natureza foram incorporados à territorialidade e à vida na floresta, no Vale do Acará. No limbo entre o moderno e o tradicional e entre o legal e o ilegal. Permanente tensão ante a desorganização fundiária e a violência crua.
A oferta de segurança como direito fundamental se faz agora urgente e vital ao projeto de desenvolvimento socioeconômico da Amazônia com a floresta em pé, ecologicamente sustentável e economicamente capaz de gerar e distribuir riqueza lícita que reverta a vulnerabilidade da sua população e lhe assegure cidadania digna.