Múltiplas Vozes 03/11/2022

Lula de novo: a esperança da recondução da política de enfrentamento à violência contra as mulheres

Em que pese a renovação do Congresso ter indicado membros que o caracterizam como ainda mais conservador do que o anterior, a previsão é de que haja a ruptura de um período de um marcante retrocesso sobre o conjunto das políticas sociais

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JULIANA LEMES DA CRUZ

Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Professora de Ensino Superior; e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni

A definição do 2º turno da eleição presidencial de 2022 marcou a vontade da maioria popular pela recondução de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República do Brasil. Para parcela significativa da população, o terceiro governo Lula representou um “broto” de esperança, apesar de reservar desafios de dimensões ainda incalculáveis.

Em que pese a renovação do Congresso ter indicado membros que o caracterizam como mais conservador do que o anterior, a previsão é de que haja a ruptura de um período de importante retrocesso sobre o conjunto das políticas sociais. Nesse cenário, no que tange às políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, parece-me que foram, durante os últimos anos, como uma planta abandonada à sombra e aparentemente seca, que, ao ser transplantada de lugar, brota, sinalizando que ali ainda há vida.

Obviamente, a vitória de Lula acontece em um outro momento histórico, distinto da realidade em que se deu a sua primeira gestão (2003 – 2006). À época, foi possível tanto a criação da Secretaria Especial de Política para Mulheres (SPM), quanto o desenvolvimento de amplas estratégias emolduradas em políticas implementadas no curso dos anos subsequentes – em meio ao primeiro governo Lula (2007 – 2010), até, pelo menos, meados do primeiro governo Dilma (2011 – 2014).

Inequívoco afirmar que, na década que seguiu à criação da SPM, houve destacado compromisso público por parte do Executivo nacional para com as questões que afetam diretamente as mulheres, o que fez com que houvesse o estreitamento das relações entre os entes federados por meio de um pacto para a implementação das políticas. Não por acaso, mas, pela ampla mobilização dos movimentos de mulheres e feminista, em momento anterior ao período da redemocratização do país, na década de 1980.

Diante de uma agenda que pautava a otimização do amplo acesso aos serviços públicos referenciados e a garantia dos direitos humanos das mulheres, conduzida pela SPM, a assunção de Jair Messias Bolsonaro (PL) à chefia do Executivo nacional em janeiro de 2019, a Secretaria começou a ser dissolvida. Um dos primeiros atos percebidos foi a exclusão de documentos importantes sobre as políticas (como atas, diretrizes, planos e relatórios das Conferências) do site oficial, onde encontravam-se hospedados, e disponíveis para consulta e download. Foi, decerto, angustiante para pesquisadores da temática não ter mais acesso às publicações da Secretaria que se tornou uma referência para estudos sobre mulheres. A escassez de dados qualificados que pudessem favorecer um diagnóstico da situação de meninas e mulheres em situação de violência no país era mais problemática do que ainda o é hoje.

No ano de 2019, a SPM foi “engolida”, juntamente com outras pastas, pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, controlado por Damares Alves, que ancorou toda sua gestão na pauta dos “costumes”, sustentando a reprodução da estrutura familiar tradicional com base nos valores cristãos. Logo, sob um discurso excludente.

As medidas do então governo minimizaram a importância do enfrentamento à violência contra a mulher, mesmo sendo o Brasil um dos países mais violentos do mundo para as mulheres. No campo da saúde, tentou-se apagar o termo “violência obstétrica” e silenciar as vítimas de estupro, em um movimento contra o aborto legal.

Durante os quatro últimos anos, os esforços dos ativistas pelas causas das mulheres voltaram-se para que não se perdessem direitos já conquistados, no lugar da luta pela conquista de outros, bem como a ocupação de espaços historicamente negados às mulheres. Como exemplo, há muitas ocupações laborais onde mulheres não são legitimadas e/ou recebem menos que homens, ainda que façam o mesmo trabalho. Esta constitui uma das pautas defendidas por Simone Tebet (MDB), senadora que foi candidata à presidência em 2022, tendo findado o 1º turno em 3º lugar na disputa. Tebet uniu forças à campanha de Lula no segundo turno e tem sido considerada uma figura fundamental para a conquista de votos importantes para a vitória do petista.

O desmonte orquestrado por Damares na pasta sob sua responsabilidade, lacrou a redução de mais de 90% das verbas destinadas às políticas voltadas para as mulheres no orçamento previsto para 2023. Soma-se a esta preocupante realidade, especialmente sobre o enfrentamento da violência contra a mulher, a insegurança gerada pela facilitação, chancelada pelo governo federal, do acesso de pessoas comuns a armas de fogo.

Assim, mesmo contando com políticas bem delineadas, diante dos sinais trocados – como o discurso do uso de armas de fogo para legítima defesa – e sem orçamento, não há aplicabilidade das estratégias. Ou seja, boas iniciativas não saem do papel e são incapazes de subsidiar a transformação de realidades.

É o que parece ocorrer com a Lei Maria da Penha, ponto de inflexão no cenário de enfrentamento da violência contra a mulher, que, mesmo considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três legislações mais bem formuladas do mundo – atrás apenas da Espanha e Chile -, sua aplicabilidade ainda admite muita contestação. Um conjunto de fatores, dentre os quais as estruturas logística e de pessoal, influenciam no cumprimento da lei pelos implementadores de diversos setores.

As alterações da LMP, efetivados no curso do vigente governo, foram importantes, mas, sem meios para a efetivação das mudanças, a proteção pretendida alcança, tão somente, o campo do simbólico. Uma vez que as legislações constituem um dos elementos que demandam que outros tantos também sejam acionados para que façam sentido sobre o problema público a ser resolvido, o que se faz com orçamento.

Com a mudança do chefe do Executivo nacional em janeiro de 2023, espera-se que os esforços possam ser, novamente, orientados ao campo das disputas pela garantia dos direitos das mulheres e por mais conquista de espaço no qual as vozes femininas ainda se mostram tímidas. O próximo governo terá sérios problemas a resolver para cumprir com os acordos de campanha, em particular, no sentido da priorização das políticas públicas para as mulheres.

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