Múltiplas Vozes 01/11/2023

Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, outro elefante na sala?

O texto da Lei Orgânica das Polícias Civis possui acertos, mas notadamente legitima controversos arranjos, interesses e valores corporativistas

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais pela UnB. Policial Civil no Distrito Federal. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O Senado Federal aprovou o projeto de lei nº 4.503/2023, que cria a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis. A base dessa proposição tramita no Congresso desde 2007, por meio do projeto de lei nº 1.949, da Câmara dos Deputados. Esse projeto se iniciou na gestão do ministro da Justiça Tarso Genro e teve ligeiro aval do atual ministro da pasta, Flávio Dino. Em suma, a proposição visa estabelecer diretrizes gerais para as polícias civis do país, assim, propondo parâmetros mínimos para as corporações. Todavia, o que esperar da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis?

Entre a versão do PL nº 1.949/2007 e a do PL nº 4.503/2023, muita coisa mudou. A proposição inicial era criticada por não reconhecer o papel de vários cargos policiais na investigação, logo enfrentava dificuldades nas próprias corporações. Dessa forma, o percurso da tramitação no Congresso Nacional possibilitou que entidades classistas das polícias civis pressionassem parlamentares a fim de inserir benefícios na legislação. Daí o projeto da lei orgânica se tornou uma arena de disputas entre polícias civis de diversas regiões do país, bem como de variados cargos policiais que as compõem. Com efeito, a fim de contemplar minimamente os inúmeros interesses divergentes, o texto do PL nº 4.503/2023 aprovado pelo Senado Federal reflete mais assentos corporativistas do que necessariamente modernização da instituição Polícia Civil. De todo modo, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis será baliza para a elaboração das leis orgânicas estaduais, com seus vícios e virtudes.

A proposta da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis traz em seu artigo 4º dezenove princípios institucionais, os quais preconizam ideais genéricos, como a dignidade humana; até outros específicos, como o livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia. Assim, à exceção dos princípios de proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais, da participação e interação comunitária e da resolução pacífica de conflitos, os quais tratam de temas voltados à sociedade civil, os demais versam sobre interesses exclusivos dos policiais civis. De alguma forma, boa parte dos princípios intenta esculpir uma autonomia às polícias civis, sobretudo com ênfase na visão de imparcialidade, tecnicidade e cientificidade da investigação policial. Ademais, o conjunto deles não apresenta novidades, porquanto reforça a miragem do paradigma jurídico na polícia civil.

Na parte das competências, no artigo 6º da lei orgânica, constam 27 disposições que possuem como epicentro o inquérito policial. Ora, como consta no caput do referido artigo: as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais são materializadas no inquérito policial. De algum modo, pretende-se ratificar o inquérito policial como uma peça análoga ao processo judicial, no qual a verdade real estaria prescrita neste documento sob o comando do delegado de polícia. Além do mais, há competências para participação do planejamento e da elaboração das políticas públicas, dos planos, dos programas, dos projetos, das ações e das suas avaliações que envolvam a atuação conjunta entre os órgãos de segurança pública ou de persecução penal. Ou seja, pretende-se dar maior protagonismo aos chefes das polícias civis no debate da segurança pública.

No tocante ao quadro policial, segundo o artigo 19 da proposta da lei orgânica, as corporações devem ter os cargos de delegado de polícia, oficial investigador de polícia e perito oficial criminal. Nesse tópico a proposição simplificou os cargos policiais, tendo os de delegado e perito atribuições especificadas, e o de oficial investigador a pretensão de agregar diversos outros cargos e suas atribuições numa única nomenclatura. A vantagem desse texto é que estabelece que os cargos são de nível superior, em função da complexidade de suas atribuições; bem como seus ocupantes exercem autoridade nos limites de suas atribuições legais. Para a ocupação dos cargos de oficial investigador de polícia e perito oficial, bastam os requisitos de especialidade de cada caso. Por sua vez, para o de delegado a norma intenta estabelecer legalmente o status de carreira jurídica ao referido cargo. Com efeito, exige-se para o posto o bacharelado em direito com experiência em atividade jurídica ou policial; além de concursos de provas e de títulos e participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases dos certames. Tais critérios são basicamente os mesmos para o ingresso na magistratura, segundo o artigo 93, inciso I da Constituição Federal.

O projeto de lei orgânica das polícias civis ainda traz uma parte de prerrogativas, garantias, direitos, deveres e vedações aos policiais. Nesse tópico a lei assegura diversas vantagens, por exemplo: indenizações por periculosidade, insalubridade, sobreaviso, exercício de trabalho noturno, auxílio-saúde. Ademais, estabelece que o poder público deve assegurar aos policiais assistência médica, psicológica, psiquiátrica, odontológica, social e jurídica, seguro de vida e de acidente pessoal. O tópico dos deveres trata de temas genéricos, logo não chega a ser uma deontologia para os policiais. No item das vedações, traz positivamente que é proibido o tratamento diferenciado pautado em sexo, em cargo e em limitação física ou para o gozo de direitos previstos em lei. Enfim, destaca-se que há nessa parte do projeto a pretensão de diversas vantagens para os policiais civis, o que pode gerar tensões entre esses profissionais e os governos estaduais na busca da implementação do que está previsto na legislação nacional.

De forma geral, o projeto de lei orgânica das polícias civis almeja legalizar muitas estruturas e prerrogativas já existentes nas corporações, ainda que precariamente. Nesse sentido, é notório que ambiciona dar tom jurídico à polícia civil, sobretudo com a normatização da natureza jurídica do cargo de delegado. Além disso, institui a figura do Conselho Nacional da Polícia Civil, com competência consultiva e deliberativa sobre assuntos das corporações. Ora, da mesma forma que estruturas constitucionalmente autônomas, como o Poder Judiciário e o Ministério Público, as polícias civis também teriam um conselho de âmbito nacional. Assim, em muitos aspectos o projeto almeja acercar as polícias civis do campo jurídico e dar autonomia a elas. Contudo, ressalta-se que, em outras ocasiões, tais intentos foram considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, o que pode levar a futuros questionamentos judiciais da lei orgânica.

As polícias civis, por certo, necessitavam de uma lei orgânica capaz de articular as realidades distintas de cada corporação da federação; especialmente de conceder uma identidade para elas. Não obstante, o PL 4.503/2023, que ora aguarda sansão do Presidente da República, não representa ainda a inovação da instituição Polícia Civil, embora vislumbre benefícios para os policiais civis. É fato. O texto da Lei Orgânica das Polícias Civis possui acertos, mas notadamente legitima controversos arranjos, interesses e valores corporativistas. Assim, corre o risco de se tornar outro elefante na sala.

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