Guaracy Mingardi
Analista criminal e Associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
De acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os latrocínios, homicídios praticados por ladrões durante um roubo, cresceram na capital paulista. Houve 43 casos em 2023 e 53 em 2024. Trata-se de aumento significativo, podendo até significar uma tendência; porém, dado o baixo números de ocorrências, talvez seja apenas um desvio estatístico. Na verdade, a maior parte do aumento ocorreu na zona sul da cidade, a maior e mais difícil de policiar.
Em alguns noticiários houve tentativa de relacionar este fato à diminuição dos homicídios no mesmo período, o que é uma interpretação errônea. Primeiro porque homicídios e latrocínios são crimes cometidos por motivos muito diferentes. Quase todos os homicídios são praticados por pessoas que conhecem as vítimas ou são rivais de alguma forma. Traficantes querendo acabar com a concorrência, por exemplo. Já os roubos seguidos de morte ocorrem entre pessoas que normalmente nunca se viram ou que não têm conhecimento do outro.
Uma tentativa mais séria foi relacionar com a queda no número de roubos. A argumentação, baseada apenas nos números, mostra que eles caíram cerca de 13%. Ou seja, oficialmente se rouba menos, porém os ladrões estão mais violentos. O que é verdade, se ficarmos na comparação meramente quantitativa baseada nos registros policiais.
Ocorre que, como demonstra pesquisa qualitativa do FBSP terminada em meados de 2024, sobre os crimes contra o patrimônio no Centro de SP, e publicada pela Revista de Estudos Avançados da USP, muitas pessoas simplesmente não registram roubos e furtos de celulares nessa região. A argumentação é de que não adianta, não vão recuperar o bem e o ladrão vai continuar impune até ser pego em flagrante. Muitas, inclusive, acreditam que simplesmente reportar ao primeiro policial militar que encontrarem é o suficiente, que o crime será registrado oficialmente. Disso resultam dois problemas. O primeiro: a não ser que tenham discado 190, não necessariamente a ocorrência vai para os arquivos da PM. Como alguns entrevistados relataram, a única ação do policial mais próximo ao crime foi mandar que ligassem para o número do Copom. Uns relatam ter feito isso, outros não. O segundo problema é que só vão para a estatística os números dos Boletins de Ocorrência da Polícia Civil. E vários entrevistados não se deram ao trabalho de comparecer à delegacia ou registrar via internet, no site da SSP/SP. Portanto o aumento da não notificação é possível. Embora não se possa afirmar isso conclusivamente, a não ser com a comparação de pesquisas de vitimização dos dois anos mencionados.
Vale notar que o bem mais roubado ou furtado é, de longe, o celular, único objeto que a maior parte das pessoas transporta consigo. Ao contrário de um veículo, é um bem que normalmente não tem seguro. Portanto a vítima não vê necessidade do BO, já que não tem para onde encaminhá-lo.
Outra questão relevante é que os casos tiveram aumento em três das cinco regiões de SP: Sul, Norte e Oeste. Na área abrangida por nossa pesquisa, o número diminuiu. Aliás não se registrou nenhum caso. Os seis registrados em 2023 causaram espanto, pois não é comum haver ladrões armados nessa região. A possibilidade de serem enquadrados e revistados é exponencialmente maior do que numa área menos movimentada e/ou policiada.
Outro fato a levar em conta é que, considerando a capital como um todo, 2023 foi um ano em que esses crimes fugiram do padrão costumeiro. Houve uma queda de mais de 30% com relação ao ano anterior. O que foi muito comemorado, pois seria, depois de 2007, o menor número de vítimas registradas. Em outras palavras, aparentemente o padrão voltou mais ou menos à normalidade.
Outro ponto a considerar é que o papel do estado é mostrar aos criminosos que matar a vítima de roubo é contraproducente. Que o caso terá prioridade e a possibilidade de punição é grande. Ou seja, cabe à polícia identificar e prender os criminosos. Seja logo após o crime, em flagrante delito, ou através de identificação. O problema é que pegar o assassino em flagrante, principalmente numa região extensa como a Sul, é tarefa quase impossível. Seria necessário haver policiais muito próximos, e que não tenham sido detectados pelos criminosos. O que torna o roubo longe das principais vias, as que normalmente são policiadas, mais atrativo.
Quanto à investigação, esse tipo de crime teria de ser investigado pelo pessoal da área, que, pelo menos em princípio, teria de conhecer sua clientela, ter informantes, etc. Ocorre que o desmonte da Civil, feito por sucessivos governos, faz com que os distritos policiais na capital tenham uma capacidade de investigação bem limitada. Apenas os departamentos como DHPP e DEIC efetivamente têm condições de investigar. Mas o DEIC está longe do trato com o ladrão de rua. Atuam só nos casos maiores. Quanto a Homicídios, que tem uma boa capacidade de investigação, normalmente trabalha com casos de mortes comuns, como citados acima. Conhecer o ladrão das quebradas, que atua sozinho ou com um ou dois cúmplices, não é bem sua expertise. Podem até conseguir, mas a falta de informantes e de arquivos muitos bons e detalhados dificulta tudo. Já o policial de área poderia saber disso, mas é muito difícil encontrar um investigador ou delegado com uma grande rede de contatos locais. A Civil está encolhida, burocratizada e sem motivação. Eu me lembro de um tira que, na delegacia em que eu trabalhava, muitos anos atrás, reconheceu um ladrão só pelo esboço apressado que fez a vítima. Assim que falou com ela, disse: “é o Periquito”. Três dias depois o indigitado estava preso e foi reconhecido pela vítima. Esse conhecimento é o que está faltando para se pegar pesado contra os latrocidas. Infelizmente isso demanda tempo, ninguém nasce sabendo ou sem ir para as ruas criar contatos.