Retrospectiva 2021

Ideologia armamentista*

Bolsonaro já declarou que flexibilização da legislação de armas evitaria que a população fosse escravizada por uma ditadura. Mas o risco maior é vermos militantes e milicianos armados para constranger opositores do atual governo

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Arthur Trindade M. Costa

Professor da Universidade Nacional de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

*Texto originalmente publicado na edição número 76 do Fonte Segura, no dia 17 de fevereiro de 2021

Na sexta-feira, 12, o governo Bolsonaro promulgou novos decretos que flexibilizam ainda mais o Estatuo do Desarmamento (EDA). Desde 2019 já foram publicados 30 medidas do gênero com essa finalidade, o que levou ao aumento recorde do número de armas em circulação.

Além de ampliar a posse e o porte de armas no Brasil, os novos decretos também reduzem a capacidade de controle do Estado sobre munição e registro de armamentos. Anunciada na calada da noite, na véspera de Carnaval e em meio a uma pandemia que já matou mais de 240 mil pessoas, a decisão veio à tona no dia em que era divulgado um aumento de 5,2% nos homicídios registrados no país em 2020, em meio a um recorde de investimentos no período.

Até 2020, a defesa da flexibilização do Estatuto do Desarmamento se baseava na ideia de que os cidadãos precisam se proteger da criminalidade. Embora simples, o argumento é equivocado. As pesquisas internacionais apontam que o crescimento do número de armas em circulação acarreta aumento nas taxas de crimes violentos. Os estudos também mostram que as chances de uma pessoa armada ser vítima de latrocínio é três vez maior do que se estivesse desarmada. Não bastasse isso, verifica-se também que quanto maior o estoque de armas maior o número de feminicídios. A atividade policial é outra atividade que se torna mais perigosa ainda.

As pesquisas nacionais mostram que cerca de 40% das armas apreendidas nas mãos de criminosos foram originalmente compradas de forma legal. E, com o passar do tempo, estas armas cairão nas mãos erradas. Tampouco é verdade que os cidadãos indefesos poderão se proteger. O custo de aquisição de armamento e munição é alto, cerca de R$ 15 mil, sendo proibitivo para a maior parte da população. Por isso, as pesquisas de opinião mostram que 72% da população não tem interesse em adquirir armamento para se proteger. O cidadão brasileiro quer. de fato, ser protegido pelo Estado.

Entretanto, o debate tomou um rumo totalmente diferente a partir de maio de 2020. A divulgação da gravação de uma reunião ministerial mostrou que as intenções de Bolsonaro têm pouco a ver com a criminalidade. Trata-se fundamentalmente de uma questão ideológica.

Segundo o presidente, as medidas de flexibilização do EDA evitariam que a população fosse escravizada por uma ditadura. O fato é que não vivemos numa ditadura. Ao contrário do que afirma o governo, o verdadeiro risco para a frágil democracia brasileira é armar segmentos específicos da população – militantes e milicianos – para constranger opositores do atual governo.

Não há qualquer argumento válido em favor da liberação da compra de até 60 armas por um único colecionador, 30 armas por caçadores ou até armas para cidadãos comuns. Também é inaceitável o desmonte dos mecanismos de fiscalização, sobretudo do trabalho do Exército brasileiro, seja pela liberação de produtos controlados ou mesmo pelo rastreamento de munição e concessão do porte.

O Brasil hoje não necessita de mais armas em circulação. O que precisamos de fato são políticas públicas eficientes e críveis, que possam reduzir os vergonhosos índices de violência que seguem crescendo de norte a sul do país. Que as autoridades e os demais Poderes se manifestem fortemente contra essas decisões autoritárias, que aos poucos desmontam todo o arcabouço legal criado pelo Estatuto do Desarmamento.

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