Perícia em evidência 13/10/2022

Identificação Humana de Desaparecidos: um imenso e doloroso desafio

A busca pela identificação não se dá apenas nos Institutos de Medicina Legal. O processo começa pela investigação, passando pela descoberta e pela remoção das ossadas e/ou corpos. A remoção, em especial, é um momento crucial e também aquele em que mais cometemos erros quanto ao correto protocolo forense

Compartilhe

Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em abril deste ano, uma matéria especial da plataforma TAB UOL chamava a atenção para uma questão relevante: a das Mortes Invisíveis relacionadas ao desaparecimento de pessoas, às valas clandestinas e mortes associadas à ação de grupos ligados a facções criminosas.

A estimativa é que tenhamos um número acima de 26 mil restos mortais não identificados no Brasil.  Somente em 2014, mais de 200 vítimas foram encontradas em 41 valas clandestinas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Imaginar algo diferente de um homicídio para essas vítimas é mero exercício de ficção.

No universo forense, a Identificação Humana envolve, além da Papiloscopia, a Medicina Legal, a Antropologia Forense, a Odontologia Legal, a Genética Forense (DNA), o Exame de Local de Crime, a Arqueologia Forense, e ainda outras áreas que podem ser acessadas com o objetivo de auxiliar de forma indireta no processo de identificação.

A Identificação Humana na história de nossa própria civilização passou paulatinamente a se constituir uma necessidade. Em meio a uma população que crescia de forma exponencial, precisávamos garantir que nós éramos nós mesmos e assim, não apenas na vida, nas relações sociais, nas relações institucionais, e em especial na morte, saber de forma inequívoca a identidade de um ser humano se tornou primordial.

Inicialmente os métodos de identificação concebidos eram antropométricos, ligados à invariabilidade do esqueleto dos adultos e à preconizada impossibilidade de se encontrar dois indivíduos com ossos exatamente iguais em suas medidas. Medições craniométricas embasavam essa metodologia, que acabou derrocada diante do surgimento do sistema de identificação através de impressões digitais. O método antropométrico apresentava imprecisões técnicas e dificuldades práticas que cresciam com o aumento populacional (e da população carcerária, alvo inicial da identificação conhecida como criminal).

As impressões digitais por sua vez ganharam a disputa pela supremacia quanto à identificação humana. Até hoje nunca foram encontradas duas impressões digitais iguais (nem mesmo as impressões de gêmeos univitelinos). Isso não significa que não possam ocorrer duas impressões digitais iguais, apenas que a probabilidade é quase desprezível. Estudos estimaram essa probabilidade em 1 em 64 bilhões. A estimativa é que cheguemos a 8 bilhões de seres humanos no planeta em novembro próximo. Portanto ainda estamos muito longe de apenas considerar possível essa hipótese.

Com o avanço tecnológico e a identificação civil em larga escala, aliada ao  emprego de sistemas automatizados, as impressões digitais se consolidaram como método mais empregado.

Ocorre que, nos casos de ossadas, de cadáveres putrefatos, de queimados, de corpos parcialmente destruídos, a impressão digital não pode ser aplicada na identificação. Pela ordem recomendada internacionalmente, após a busca de impressões digitais, seguem a pesquisa da arcada dentária (Odontologia Legal) e o D.N.A. (Genética Forense). Importa lembrar que todos os três métodos são comparativos e exigem padrões para serem empregados mediante confrontos. Isso explica em parte o entendimento de que nem sempre é possível a identificação.

A busca por desaparecidos e a possibilidade de identificação de ossadas não é uma exclusividade brasileira. Mundo afora, grupos especializados em antropologia seguem incansáveis pela busca e identificação de desaparecidos, em sua maioria relacionados a regimes políticos autoritários, genocídios, guerras civis. Por aqui, temos os nossos desaparecidos políticos onde despontam a guerrilha do Araguaia e a Vala Clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo.

O fenômeno das valas clandestinas atuais tem outra origem: o crime organizado e a guerra entre facções. O México apresenta situação similar. Um levantamento coletivo de jornalistas intitulado A Dónde Van los Desaparecidos, publicado em 2018, revelou que 2.884 corpos foram localizados no país em 1.978 valas clandestinas, entre 2006 e 2016. Além disso, foram encontrados 324 crânios e 217 esqueletos – entre outros tipos de restos mortais, como fragmentos ósseos.

A busca pela identificação não se dá apenas nos laboratórios de Antropologia dos Institutos de Medicina Legal. O processo começa pela investigação, passando pela descoberta e pela remoção das ossadas e/ou corpos. A remoção, em especial, é um momento crucial e também aquele em que, no Brasil, mais cometemos erros quanto ao correto protocolo forense. Em sua maioria, as ossadas são retiradas de suas valas sem o devido cuidado e sem seguir o protocolo que prevê toda uma série de procedimentos inerentes à Arqueologia Forense. Por aqui, a cadeia de custódia é desprezada e as covas e valas não são tratadas como locais de crime. Para ilustrar nossa afirmação, basta lembrar que todo o material removido de uma cova ou vala deveria ser devidamente processado na busca de vestígios. É comum se observar máquinas e homens cavando o solo sem qualquer cuidado. Muitas vezes somente depois que os ossos afloram é que se aciona a perícia, que nada mais faz do que uma mera constatação.

Como nos ensina Alejandra Guillén, jornalista independente e docente na Universidade de Guadalajara: “A não identificação é uma segunda violência com o corpo morto que foi ocultado“.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES