Perícia em evidência 21/05/2025

Homicídios ocultos no Brasil seguem presentes nas estatísticas do Atlas da Violência

Sem uma comunicação eficiente entre todos os operadores, ou seja, as agências policiais e as secretarias de saúde, com um compartilhamento das informações de modo mais efetivo, tal classificação continuará a incomodar nossas estatísticas

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal

No último dia 12, foi divulgado O Atlas da Violência 2025, que consolida os números referentes à 2023), parceria entre o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Coordenado por Daniel Cerqueira (IPEA) e Samira Bueno (FBSP), o estudo revelou, pelo segundo ano consecutivo, dados sobre os chamados “Homicídios Ocultos”, que repercutiram intensamente na mídia.

Segundo esse levantamento:

Entre 2013 e 2023, 8,6% das mortes por causa externa não tiveram a intencionalidade identificada, isto é, naquele período, 135.407 pessoas morreram de morte violenta sem que o Estado conseguisse identificar a causa básica do óbito, se decorrente de acidentes, suicídios ou homicídios, constituindo as chamadas Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI).

“…a incapacidade do Estado em identificar a causa básica do óbito aumentou consideravelmente a partir de 2018. O fenômeno não é aleatório e está concentrado em algumas UFs. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia concentram 66,4% das MVCI

Importa lembrarmos que a fonte de informações na qual está baseado o Atlas da Violência, no que se refere à questão dos homicídios, é gerada pelo Ministério da Saúde, através do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade).

A pergunta-chave que se pode fazer em relação ao tema é: por que uma morte de causa externa entra em uma classificação como sendo de “causa ignorada”? A morte classificada como associada a causas ditas externas inclui os homicídios, acidentes e suicídios, todas modalidades de mortes violentas, e, portanto, não naturais. Será que é tão difícil assim definir essa etiologia para mortes violentas? Seria um problema relacionado ao fluxo de informações entre agências do Estado? Por que a concentração do problema em entes federativos específicos?

Buscando esclarecer um pouco essas questões acessamos um documento oficial importante, intitulado “Declaração de Óbito: manual  de instruções para preenchimento”, publicado pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Coordenação-Geral de Informações e Análises Epidemiológicas, atualizado em 2022.

Naquele documento constam as definições empregadas e que julgamos relevantes:

Óbito por causa externa: é o que decorre de uma lesão provocada por acidente ou violência (agressão, suicídio, acidente ou morte suspeita), qualquer que seja o tempo decorrido entre o evento e o óbito.

Causas de morte: as causas de morte, a serem registradas no atestado médico de óbito, são todas as doenças, estados mórbidos ou lesões que produziram a morte, ou que contribuíram para ela, e as circunstâncias do acidente ou da violência que produziu essas lesões.

Causa básica de morte: a causa básica de morte é definida como: (a) a doença ou a lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte; ou (b) as circunstâncias do acidente ou da violência que produziu a lesão fatal.

A declaração de óbito é apresentada em um formulário, cujos blocos apresentam seus respectivos campos de preenchimento. O Bloco VII é exatamente o de Causas Externas. As instruções para preenchimento daquele bloco são reproduzidas a seguir:

PROVÁVEIS CIRCUNSTÂNCIAS DE MORTE NÃO NATURAL

48 Tipo – assinalar com um “X” a opção correspondente ao tipo de morte violenta ou circunstâncias em que se deu a morte não natural (1 – Acidente, 2 – Suicídio, 3 – Homicídio, 4 – Outros). Essa informação frequentemente é dada pelo médico-legista, ou obtida nos laudos do IML. Quando não for sabido o tipo, informar 9 –Ignorado.” Grifo do autor

O trecho destacado pode explicar em parte problemas enfrentados com os dados. Na perícia oficial de natureza criminal há uma divisão de trabalho e uma competência que são específicas de cada um dos peritos. Os peritos criminais, em casos em que o cadáver está presente na cena de crime, apresenta um DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL PARA A MORTE VIOLENTA, exatamente a distinção entre homicídio, suicídio e acidente. Já o perito médico legista apresenta em seu Laudo Cadavérico a CAUSA MÉDICA DA MORTE. São coisas bem distintas. Vamos exemplificar: um homicídio produzido com arma de fogo, no qual a vítima tenha sido atingida por um único projétil. O perito criminal poderá concluir por homicídio, mas o médico legista, ao responder um dos quesitos predefinidos de seu laudo, a saber: “qual a causa da morte?”, poderá escrever: morte por choque hipovolêmico, associado a lesão torácica causada por projétil de arma de fogo. Um médico não deveria se manifestar sobre um diagnóstico diferencial, já que está examinando apenas o cadáver, sem qualquer contextualização e não pode também confiar em informações que acompanham uma solicitação de perícia. Deve se restringir aos vestígios e a causa médica da morte. Mesmo em situações óbvias, como, por exemplo, quando recebe um cadáver com múltiplas lesões de arma de fogo, podendo em tese excluir acidente e suicídio, a uniformidade do processo deveria prever uma segunda instância para a definição final do diagnóstico diferencial da morte. Assim a redução da chamada causa indeterminada seria efetiva, além da correção de possíveis outros erros.

Há ainda os casos em que não há perícia de local de crime com o corpo presente, então o estabelecimento dessa causa da morte estaria restrita à escolha do legista ao preencher um atestado de óbito e às informações de um inquérito policial (e eventualmente de um processo na justiça).

Portanto, o próprio manual oficial sobre o atestado de óbito incorre em erro. Alguns estados possuem, certamente, mecanismos de verificação quando a opção é pelo campo 9 do formulário, ou seja, causa IGNORADA.  Se essa informação não for buscada em um protocolo que realimente o sistema mas com uma informação de qualidade, essa lacuna permancerá existindo.

Mesmo com essa previsão, teremos casos nos quais nem mesmo a investigação ou a perícia serão capazes de estabelecer o diagnostico diferencial, a ocorrência ocupará essa classificação indeterminada, mas se essa definição vier muito tempo depois, por exemplo, num julgamento, o dado precisará ser atualizado e isso dificilmente ocorre.

Os avanços sobre esse tema dependem de que os mecanismos de controle dessas informações sejam revistos e uniformizados para todos os estados. Sem uma comunicação eficiente entre todos os operadores, ou seja, as agências policiais e as secretarias de saúde, com um compartilhamento das informações de modo mais efetivo, não será possível corrigir esses dados e os Homicídios Ocultos seguirão incomodando nossas estatísticas!

 

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