Homicídios ocultos e estimados no Brasil e UFs
Devido à repercussão acerca da divulgação do número de homicídios ocultos na edição de 2024 do Atlas da Violência, os governos de muitas UFs se mobilizaram para melhorar a qualidade dos dados, o que contribuiu para diminuir as MVCI
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Entre 2013 e 2023, segundo o Atlas da Violência 2025, 8,6% das mortes por causa externa não tiveram a intencionalidade identificada, isto é, no período, 135.407 pessoas morreram de morte violenta sem que o Estado conseguisse identificar a causa básica do óbito, se decorrente de acidentes, suicídios ou homicídios, constituindo as chamadas Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI). Conforme apontado no Gráfico 3.1, a incapacidade do Estado em identificar a causa básica do óbito aumentou consideravelmente a partir de 2018. O fenômeno não é aleatório e está concentrado em algumas UFs. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia concentram 66,4% das MVCI.

Tendo em vista que parcela dessas MVCI é formada, na realidade, por homicídios que ficaram ocultos nas estatísticas, as análises sobre prevalência da violência letal ficam prejudicadas. Visando contornar esse problema, Cerqueira e Lins (2024a) estimaram a parcela de homicídios ocultos no conjunto de MVCI. Nesse trabalho, os autores utilizaram uma metodologia baseada em modelos de aprendizado supervisionado (machine learning), em que o padrão probabilístico de características pessoais e situacionais para cada tipo de evento (se homicídio ou se suicídio/acidente) foi aprendido, com base no uso intensivo de dados. A análise baseou-se nos microdados de óbitos por causas não naturais (ou violentas) ocorridas no Brasil desde 1996. Neste texto são apresentados o número e a taxa de homicídios estimados com base na metodologia de Cerqueira e Lins (2024a), sendo que o número de homicídios estimados corresponde à soma dos homicídios registrados e dos homicídios ocultos.

O Gráfico 3.2 apresenta a evolução das mortes violentas por causa indeterminada, a proporção dessas mortes em relação às mortes por causas externa e, seguindo a metodologia de Cerqueira e Lins (2024a), a classificação das mortes por causa indeterminada em homicídios ocultos ou não homicídios. Ao longo dos 11 anos analisados, em média, o Estado não conseguiu identificar a intencionalidade de 12.309 óbitos ao ano. A partir de 2018 observamos aumento nos valores absolutos e na participação relativas das MVCI. Enquanto no período encerrado em 2017 a participação anual média das MVCI nas mortes por causa externa foi de 6,6%, entre 2018 e 2023 a média anual foi de 10,3%.
No período compreendido entre 2013 e 2023, identificamos a ocorrência de 51.608 homicídios ocultos no Brasil, que passaram ao largo das estatísticas oficiais de violência no país, uma média anual de 4.692 homicídios que deixaram de ser contabilizados. Tais homicídios, cujas causas básicas o Estado não identificou, correspondem a tragédias invisibilizadas que produzem número de vítimas comparável ao de quedas de 100 Boeings 747-8i totalmente lotados, sem sobreviventes. Portanto, nos 11 anos em análise, ao invés de 598.399, houve, na realidade, 650.007 homicídios no país. Para que se possa entender a magnitude do problema, o somatório de homicídios ocultos entre 2013 e 2023 foi maior do que os homicídios registrados no último ano analisado.
O Gráfico 3.3 mostra a evolução das taxas de homicídios estimados e registrados. Note que as duas curvas seguem paralelas, sendo que, a partir de 2018, em função do aumento de MVCI e, consequentemente, de homicídios ocultos, essa diferença aumentou. De fato, a média da diferença entre as duas taxas entre 2013 e 2017 era de 1,8 homicídio por cem mil habitantes. Entre 2018 e 2023, a diferença média aumentou para 2,6 homicídios por cem mil habitantes. Ou seja, parcela da queda dos homicídios registrados a partir de 2018 pode ser atribuída a uma piora na qualidade dos dados, o que fez com que existissem mais homicídios que ficaram ocultados nas estatísticas oficiais.

O Mapa 3.1 apresenta as taxas de homicídios estimadas (incluindo os homicídios ocultos), em 2023. Comparando com o Mapa 2.1 (vide estudo completo), que aponta a taxa de homicídios registrados, não existem grandes alterações entre os quatro grupos listados, à exceção dos estados de AL e PR, que se incluíram em um extrato acima na escala, e do estado de RR, que ficou com a cor mais clara.

Um fato interessante a notar é que, após a repercussão[1] acerca da divulgação do número de homicídios ocultos no Atlas da Violência de 2024, os governos de muitas UFs se mobilizaram para melhorar a qualidade dos dados, fazendo diminuir as MVCI.[2] O resultado desse esforço foi captado por nossas estimativas, que indicaram que 21 UFs conseguiram reduzir o número de homicídios ocultos entre 2022 e 2023. Um caso interessante de citar é o do ES, que criou um grupo de trabalho com componentes das secretarias de saúde, segurança pública e planejamento a fim de qualificar os dados e permitir uma melhor correspondência entre as informações do SIM e da polícia. Com isso, enquanto a estimativa de homicídio oculto no ES em 2022 foi de 205 casos, em 2023 esse indicador passou para apenas sete casos, fazendo com que o estado apresentasse, nesse último ano, a menor taxa de homicídio oculto por 100 mil habitantes do país.
Uma consequência desse processo de aprimoramento na qualidade da informação é que, com a diminuição do número de homicídios ocultos em 2023, muitas mortes terminaram sendo classificadas corretamente como homicídios registrados nesse ano, fazendo com que a redução dos homicídios registrados entre 2022 e 2023 fosse menor do que a redução real para essas 21 UFs. Para tomar o exemplo do ES, enquanto a redução da taxa de homicídio registrado nesse estado foi de zero, a redução da taxa de homicídio estimado foi de 14,4%, entre 2022 e 2023.
O Gráfico 3.4 apresenta as 10 UFs com maiores taxas estimadas de homicídio, entre 2013 e 2023. Em todos os anos apresentados, a adição dos homicídios ocultos à taxa de homicídios registrados altera o ranking das UFs mais violentas. Em todos os anos investigados, as posições intermediárias sofrem alterações após a inclusão dos homicídios ocultos.

As tabelas 3.1 e 3.2 (vide estudo completo) apresentam o número e a taxa de homicídios estimados para cada UF, entre 2013 e 2023. Note que a inclusão dos homicídios ocultos faz mudar significativamente os indicadores para um grupo de UFs. São Paulo é o caso mais extremo: em 2023, o estado deixou de registrar 2.277 homicídios. Assim, enquanto a taxa de homicídios registrados era de 6,4 para cada cem mil habitantes, a taxa estimada naquele ano era de 11,2. Com isso, o estado de São Paulo deixa de ser a UF menos violenta da nação, passando para a segunda posição, atrás de Santa Catarina.