Atlas da Violência 28/05/2025

Homicídios de mulheres nas residências e a mensuração do feminicídio no Brasil

Ainda que 65% dos homicídios femininos de 2023 tenham acontecido fora da residência, o comportamento histórico das taxas nos permitiria afirmar, seguindo o coro da tradição dos estudos em violência de gênero, que a casa segue como um lugar de risco persistente para as mulheres

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Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No Brasil, a violência letal contra as mulheres ainda é uma violência que majoritariamente ocorre no contexto doméstico e é estudada sob essa ótica. Não por coincidência, pesquisas vêm mostrando, ao longo dos anos, que a casa é o lugar menos seguro para a mulher. Dados de registros policiais publicados no 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública evidenciam que nos casos de feminicídio, 64,3% dos eventos aconteceram dentro de casa. Nas demais formas de MVI, as mortes em casa representam 29,3% do total (FBSP, 2024). Esse dado de registros policiais ajuda a ilustrar que, embora o ódio ao gênero possa estar presente na violência letal contra mulheres tanto em contextos domésticos como nos urbanos, na prática, uma morte costuma ser percebida e classificada como feminicídio quando acontece no ambiente doméstico.

Vale lembrar que, nos termos da lei, o feminicídio é a morte de mulher por razões da condição do sexo feminino, e estaria configurado quando o crime acontece em contexto de violência doméstica ou quando envolve menosprezo ou ódio à condição de mulher. Este crime entrou para o Código Penal brasileiro primeiramente em 2015, como uma figura qualificada de homicídio, por meio da Lei nº 13.104. Mais recentemente, em 2024, por meio da Lei nº 14.994, o feminicídio foi atualizado e transformado em tipo penal autônomo, uma mudança importante, na medida em que pode contribuir para a visibilidade do fenômeno, algo que desde 2015 tem paulatinamente acontecido. E os registros policiais têm, aos poucos e não sem percalços, sido adaptados a esse novo olhar para a morte violenta de mulheres, enxergando-a como feminicídio. Em 2023, a proporção de registros policiais de feminicídios em relação aos homicídios femininos era de 37,3%, como mostrou o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2024). Ainda que seja um percentual significativo, isso varia muito de estado para estado, evidenciando que, seja nas esferas da saúde seja ou da segurança pública, enxergar a morte violenta de uma mulher como feminicídio não é um desafio totalmente superado.

Apesar de a polícia ter a possibilidade, já no registro da ocorrência, de classificar um crime como homicídio ou feminicídio, no sistema de saúde isso não acontece. De modo que, entre as mortes do sistema de saúde não é possível separar o que é homicídio e o que é feminicídio. Em uma tentativa de resolver esse impasse, a estratégia que tem sido adotada nas mais recentes edições do Atlas da Violência, e que replicamos na corrente, é o uso de uma proxy, ou seja, uma variável que sirva como indicativo do fenômeno. Considerando que os registros policiais mostram que a maioria dos feminicídios ocorre dentro de casa, adotamos os homicídios de mulheres ocorridos na residência como uma estimativa do feminicídio. Para fins comparativos, o Gráfico 5.4 ilustra, desde 2015 (ano de promulgação da Lei do Feminicídio), os números de feminicídio no Brasil, a partir de registros policiais, de um lado, e de outro, os registros do sistema de saúde de homicídios femininos nas residências.

O gráfico mostra, nos últimos anos, uma proximidade entre os números de feminicídios registrados pelas polícias e os de homicídios de mulheres ocorridos na residência e registrados pelo sistema de saúde, o que reforça a validade do uso desta última categoria como uma proxy para o feminicídio. A partir da promulgação, em 2015, da Lei nº 13.104, levou certo tempo para que a polícia – responsável pela classificação inicial de um crime no sistema de justiça criminal – incorporasse essa nova possibilidade de tipificação em sua dinâmica de trabalho, e isso ajuda a explicar o crescimento mais acentuado dos registros policiais entre 2015 e 2018. Como a necessidade de classificação entre os tipos penais não faz parte da dinâmica do sistema de saúde, os números dos eventos registrados por essa fonte, nesse período, já eram mais altos. A partir de 2019, observa-se uma estabilização e maior consonância entre os números das duas fontes, indicando que o homicídio de mulheres na residência é, de fato, um indicativo relevante para estimar o que seriam os feminicídios dentro dos registros do sistema de saúde.

De acordo com os registros do SIM, em 2023, do total de homicídios registrados de mulheres, 35,0% aconteceram na residência. Considerando essa proporção, 1.370 dos 3.903 homicídios registrados no ano teriam acontecido nesse local, sendo lidos, portanto, como feminicídio. Esse percentual representa um ligeiro aumento em relação a 2022, quando 34,5% dos casos haviam ocorrido na residência. Em termos de taxas, é possível observar um padrão relativamente estável nos homicídios dentro de casa nos últimos 11 anos, com a taxa de aproximadamente 1,2 por grupo de 100 mil mulheres. No caso dos homicídios que ocorrem fora da residência, a variação nos últimos 10 anos é mais significativa, tal como mostra o Gráfico 5.5.

Enquanto as taxas de homicídio dentro de casa oscilaram entre 1,2 e 1,4 por 100 mil mulheres, com o maior aumento (de 7,0%) registrado entre 2016 e 2017, e a maior redução (de 10,1%) entre 2018 e 2019, os homicídios ocorridos fora da residência apresentaram taxas mais elevadas, variando de 2,3 a 3,5 por 100 mil mulheres, com o maior crescimento (de 4,4%) também entre 2016 e 2017, e a maior queda (de 21,3%) entre 2018 e 2019. Depois desse período em que houve uma diminuição mais drástica da taxa, ela tem se mantido mais estável, variando entre 2,3 e 2,4.

Uma hipótese que ajuda na compreensão dessa tendência – e que já foi explorada inclusive na recente 5ª edição da pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil (FBSP, 2025) para explicar o aumento da violência vivenciada pelas mulheres dentro de casa – é pensar que, enquanto a violência contra a mulher em locais públicos talvez seja mais suscetível de ser afetada por ações de segurança pública e campanhas educativas que pregam a inaceitabilidade da violência de gênero, a casa seria, ao contrário, um território menos vigiado para o agressor. No caso do feminicídio, não houve, em nenhum momento da série observada, uma redução tão drástica como a que aconteceu com os demais homicídios femininos. A leitura dessa dinâmica, nesse sentido, seria a de que, por acontecerem dentro de casa, num espaço mais privado, com menos controle e intervenção externa, a violência tende a se manter mais estável, já que depende menos de fatores externos e mais das dinâmicas interpessoais, patriarcais e estruturais. Nesse sentido, ainda que 65,0% dos homicídios femininos de 2023 tenham acontecido fora da residência, o comportamento histórico das taxas nos permitiria afirmar, seguindo o coro da tradição dos estudos em violência de gênero, que a casa segue como um lugar de risco persistente para as mulheres.

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