Governança e reforma do setor de segurança: agenda possível e necessária para o Brasil
Inserir os conceitos de governança e reforma do setor de segurança no centro do debate brasileiro significa uma oportunidade para refletir de forma crítica sobre os modelos institucionais vigentes, valorizar experiências locais de inovação e construir, de maneira colaborativa, um setor de segurança mais eficiente, justo, transparente e comprometido com a democracia
Ariadne Natal
Doutora em sociologia, pesquisadora associada do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e do Núcleo de Estudos da Violência da Univerisade de São Paulo (NEV-USP). Associada plena do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O debate sobre segurança pública no Brasil tem sido frequentemente marcado por agendas de curto prazo e respostas imediatistas, centradas na repressão ao crime e no fortalecimento de aparatos coercitivos. Ainda assim, é importante reconhecer que, a duras penas, ocorreu a consolidação de um campo de reflexão e ação voltado à melhoria da governança democrática da segurança. Iniciativas como a criação de ouvidorias externas das polícias, a implementação de planos estaduais de segurança cidadã, a expansão do uso de câmeras corporais e os debates em torno do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) expressam preocupações com transparência, controle social, eficiência e responsabilização — temas centrais no debate internacional sobre Security Sector Governance (SSG) e Security Sector Reform (SSR).
Organismos multilaterais e organizações internacionais vêm utilizando amplamente esses dois conceitos para pensar estratégias de fortalecimento institucional e aprimoramento da segurança pública. A governança do setor de segurança refere-se à maneira como o poder e a autoridade sobre a segurança são exercidos no interior de um Estado, envolvendo necessariamente tanto atores estatais — como polícias, sistemas de justiça, parlamentos, poderes executivos e forças armadas — quanto atores não estatais, como organizações da sociedade civil, academia, empresas privadas e meios de comunicação. A boa governança do setor de segurança pressupõe a aplicação dos mesmos princípios que orientam outras áreas da administração pública: responsabilização, transparência, Estado de Direito, participação social, responsividade, efetividade e eficiência.
A reforma do setor de segurança, por sua vez, é um processo técnico e político voltado à melhoria da prestação, gestão e supervisão da segurança pública, com vistas a torná-la mais eficaz e mais alinhada aos direitos, expectativas e necessidades da população. Isso envolve desde reformas legislativas e organizacionais até mudanças operacionais, incluindo qualificação profissional, padronização de condutas, desenvolvimento de protocolos e fortalecimento dos mecanismos de controle interno e externo. No Brasil, iniciativas como a modernização das polícias civis, programas de redução de homicídios e o programa de audiências de custódia são exemplos de reformas que dialogam com os princípios da SSR.
Embora os termos SSR e SSG sejam frequentemente aplicados a países em contextos de pós-conflito, reconstrução institucional ou transição democrática — sobretudo no continente africano e no Orente Médio —, é importante destacar que esses conceitos são igualmente úteis e necessários em democracias consolidadas ou em processo de consolidação. Isso porque nenhuma estrutura de segurança está imune à necessidade de aperfeiçoamento, seja para enfrentar novas ameaças, superar desigualdades no acesso à justiça ou prevenir abusos de poder. A adoção de tais conceitos e princípios permite traçar paralelos entre realidades distintas, aprender com casos de outros países e facilitar a comunicação com organismos internacionais, instituições de cooperação e redes transnacionais que atuam na área da segurança e da justiça.
Entretanto, aplicar esses princípios no Brasil exige lidar com desafios concretos e persistentes. A fragilidade institucional se expressa na descontinuidade de políticas públicas, frequentemente desmanteladas ou ignoradas a cada mudança de gestão. A resistência corporativa de setores das polícias e do sistema de justiça impõe barreiras à implementação de mecanismos de controle, padronização de condutas e ampliação da transparência. As limitações orçamentárias dificultam o financiamento de reformas estruturais e sustentadas e, especialmente em áreas como formação continuada, monitoramento e avaliação de políticas e adoção de novas tecnologias. Soma-se a isso um ambiente de forte polarização política, no qual a segurança pública é muitas vezes instrumentalizada como pauta eleitoral, em vez de ser tratada como política de Estado baseada em evidências, pactos sociais e compromissos institucionais.
Reforçar os pilares da boa governança no setor de segurança é uma forma de proteger as instituições democráticas e ampliar a confiança da população no Estado. Em contextos como o brasileiro, marcados por altos índices de homicídios, letalidade policial, seletividade penal, ausência de controle efetivo e desconfiança nas instituições, a adoção da lógica da reforma orientada por princípios pode representar um caminho estratégico para enfrentar a crise de legitimidade e promover mudanças sustentáveis. Para que essas reformas sejam bem-sucedidas, é fundamental garantir engajamento político, coordenação interinstitucional e apropriação local do processo. Experiências internacionais mostram que processos participativos e liderados por atores nacionais e locais — e não impostos de fora — são os que mais têm chance de êxito e sustentabilidade.
Inserir os conceitos de governança e reforma do setor de segurança no centro do debate brasileiro não significa importar soluções prontas, mas sim adotar uma linguagem e um marco de análise que ajudem a organizar diagnósticos, compartilhar boas práticas e desenhar respostas estruturais. Trata-se de uma oportunidade para refletir de forma crítica sobre os modelos institucionais vigentes, valorizar experiências locais de inovação e construir, de maneira colaborativa, um setor de segurança mais eficiente, justo, transparente e comprometido com a democracia.