Feminicídio e suicídio por policiais militares: a necessidade de intervenções individuais e sistêmicas
O feminicídio e o suicídio são percebidos apenas a partir das ações individuais; os sistemas sociopolíticos da organização do trabalho e das relações de poderes são ignorados, o que dificulta a intervenção por meio de políticas públicas
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O início de fevereiro foi marcado com a notícia de uma tragédia familiar: a morte de dois filhos adolescentes, da mãe e do pai. As informações iniciais continham narrações de barulhos de tiros e incêndio na casa. Após algum tempo, desenha-se a possibilidade de um feminicídio, com assassinato de esposa e filhos, incêndio e suicídio. A possível autoria é de um sargento da PMDF. Infelizmente, se confirmada a hipótese, é um ato que traz consigo a tese de relações violentas do trabalho em segurança pública militarizado, das relações de gênero e da falta de assistência sistêmica, racional e protocolar.
Tanto o policial militar quanto as vítimas solicitaram auxílio a profissionais dias antes. Os colegas policiais militares relataram que o policial comentou sobre as pressões que estava sofrendo e que não havia assistência institucional. Já a esposa solicitou ajuda institucional um dia antes relatando que estava com medo do esposo. Os pedidos de auxílios apresentaram as dores da intersecção das relações do trabalho e a interseccionalidade das relações violentas de gênero.
O trabalho policial militar é precarizado pelo ato e pela lógica. Enquanto ato, há a percepção constante de improvisação para solucionar questões de segurança, com baixa confiabilidade na formação profissional e em algumas especializações, tendo como conhecimento orientador de conduta o ensino das ruas com outros policiais. Mesmo não havendo confrontos letais diários, a lógica da construção de uma guerra contra qualquer pessoa próxima exige um grau de “vigilância” constante e uma demanda de armamento com capacidade letal superior ao do possível inimigo para mitigar a sensação de insegurança no “campo de guerra”. Com carga horária geralmente maior que a de outras profissões, sem adicional noturno ou finais de semana e feriados, entre outros momentos que proporcionariam maior convívio familiar.
Os momentos de lazer são típicos de quem está em uma instituição com essas características e são restritos às pessoas do mesmo ciclo profissional. É uma profissão com baixo reconhecimento institucional, com pouca progressão funcional e baixos reconhecimento e confiança da sociedade. Não há programas de saúde integral institucionalizados como forma de prevenção nas polícias militares de forma continuada. O corpo e a mente policiais sofrem com o exercício de atividade laboral sem assistência sistêmica.
As consequências da precarização do trabalho policial militar podem ser drásticas. Tanto para a saúde do corpo quanto da mente. O extremo desse sofrimento é o suicídio. Segundo pesquisa realizada pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ, cerca de 10% dos policiais militares entrevistados declaram ter tentado suicídio e outros 20% declararam ter pensando tentar em algum momento. Já os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentaram que em 2019 houve mais suicídios registrados de policiais do que morte em decorrência do serviço. Nesse sentido, a intersecção do sofrimento do trabalho de reprimir delitos e (con)viver com a violência a partir de um trabalho precarizado impacta violentamente em um grupo, com possíveis repercussões na sociedade.
Já a vítima de feminicídio soma-se a uma triste estatística elaborada só a partir de 2015, quando os legisladores reconheceram e tipificaram o ato com a Lei nº 13.104. O recente e tardio reconhecimento demonstra a assimetria de poderes políticos e jurídicos em uma sociedade patriarcal. O feminicídio faz parte de um processo de violências tipificadas no rol da Lei nº 11.340, de 2006. São violências que a vítima antecipava, com medo, a colegas do sargento e à instituição nos dias anteriores. A interseccionalidade, isto é, a sobreposição de identidades e sistemas de dominação e discriminações limita o acesso do auxílio nas relações de violência. E, neste caso, ser mulher, negra e periférica e esposa de policial militar reduziu a possiblidade de intervenção formal de acolhimento e prevenção.
O arcabouço legal prevê que há a perda do porte de arma em situações de risco de violência doméstica. Para policiais militares, a consequência é o afastamento do trabalho ostensivo. Desta forma, é sabido que a denúncia contra as violências psicológicas, morais, entre outras, pode afetar a carreira policial. A pressão psicossocial sobre a esposa para não denunciar redobra.
Observando a trágica notícia, percebe-se que não foram institucionalizadas as ações necessárias para prevenção e acolhimento de ambos, tanto do profissional em sofrimento quanto da vítima de violência doméstica. Ainda há a necessidade de que tais práticas sejam socializadas para todos os profissionais, não apenas para os profissionais especializados.
As entrelinhas deste ensaio não pretendem relacionar diretamente como causa do feminicídio promovido pelo policial militar a precarização do trabalho. Mas apontar como um ato suicida, tido como individual, pode ter nuanças a partir da lógica do sofrimento do trabalho. E que a intersecção do sofrimento do trabalho com a interseccionalidade de uma sociedade que só recentemente reconheceu, a partir da legislação, as violências contra a mulher são comburentes para seguidos feminicídios e suicídios, pois, na lógica patriarcal, a vida da mulher e dos filhos é do homem, e, se o homem não vive, a família também não viverá sem o homem. Saliento que tanto o feminicídio quanto os suicídios são percebidos apenas a partir das ações individuais e os sistemas sociopolíticos da organização do trabalho e das relações de poderes são ignorados, não ganhando relevo como passíveis de intervenção de políticas públicas.