Especial 27/03/2024

FBSP, 18 anos

Ao longo destas quase duas décadas, contribuímos para formar a consciência de que a falta de dados confiáveis torna impossível a formulação de políticas de segurança pública que deem resposta aos problemas mais graves da sociedade

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Elizabeth Leeds

Presidente de Honra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A ideia da criação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública surgiu há 20 anos, como fruto de uma conversa entre colegas profissionais com ideias semelhantes, e evoluiu até se tornar a voz mais importante do Brasil para a reforma da polícia e da segurança pública, reconhecido nacional e internacionalmente como fonte confiável para dados e análises qualificadas de políticas de segurança pública. Seu surgimento decorreu do acaso, da existência de redes informais e do compromisso de profissionais com o avanço de agendas frequentemente vistas como subversivas e politicamente perigosas.

Em uma reunião da SUR/Conectas Direitos Humanos em São Paulo, em outubro de 2004, tive uma conversa com José Marcelo Zacchi, que havia trabalhado com Luiz Eduardo Soares na Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), no primeiro ano do governo Lula. Lamentamos o abandono do programa de Luiz Eduardo após sua saída do governo e o subsequente sentimento de decepção de muitos profissionais e acadêmicos que haviam participado da formulação do plano. Sentimos que seria apropriado reunir esses atores, bem como outros que haviam dado contribuições positivas para o avanço das políticas de segurança pública nos oito anos anteriores. Não por coincidência, muitas dessas pessoas haviam sido apoiadas pela “Initiative on Institutional Change for Democratic Policing”, do Escritório da Fundação Ford no Brasil. Ana Toni, representante do Escritório no país, estava presente na reunião e concordou em sediar uma reunião de um dia na Fundação Ford, em dezembro de 2004.

A reunião foi convocada como uma “conversa” não estruturada, projetada para avaliar os avanços e retrocessos na segurança pública desde 2000 e para estimar até que ponto o grupo estava interessado em seguir uma agenda coletiva. Desde o início, a ideia era reunir pessoas e entidades que historicamente não se comunicavam ou, o que é pior, desrespeitavam-se publicamente. Os participantes incluíam acadêmicos, atores de organizações não-governamentais e policiais do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Nossas expectativas não eram ambiciosas: estávamos preparados para sugerir a criação de um observatório virtual ou, minimamente, um website de segurança pública. Para nossa grande surpresa, houve quase um consenso de que um projeto comum deveria ser traçado. Uma sugestão de um participante para estabelecer organização semelhante à Police Foundation, de Washington (criada com o apoio da Fundação Ford no início da década de 1970), foi recebida com grande entusiasmo.

Nos meses seguintes, realizamos reuniões bimestrais. A cada encontro, foram tomadas decisões-chave para o estabelecimento de um fórum de diálogo em segurança pública e a expansão desse organismo, de modo a incluir mais participantes, cuja seleção seria baseada nos critérios de diversidade regional, amplitude institucional (por exemplo, todas as instituições policiais do Brasil: militares, civis, federais), envolvimento da sociedade civil na segurança pública, diversidade de gênero e, mais importante, compromisso com os ideais de políticas democráticas de segurança pública. Os participantes do fórum agora vinham dos estados do Pará, Pernambuco, Mato Grosso e Ceará, além dos quatro estados originais. Assim, desde o início, nos preocupamos em construir um processo inclusivo e orgânico, com decisões-chave a ser tomadas de forma coletiva. A Fundação Ford apoiou estudos de planejamento e viabilidade e a proposta final para criação de uma organização permanente. Com financiamento inicial das fundações Ford, Tinker e Open Society, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública foi oficialmente estabelecido em março de 2006. É importante ressaltar, naquela fase da criação do FBSP, as contribuições de duas pessoas que nos deixaram: Paulo Sette Câmara, ex-secretário de Segurança Pública do Estado do Pará, e Paulo de Mesquita Neto, especialista e defensor dos direitos humanos, de São Paulo. Suas contribuições deixaram uma marca indelével no DNA da entidade.

O sucesso do Fórum não veio desacompanhado de desafios e conflitos. Lançar luz sobre a verdade sempre será problemático para os tomadores de decisão que desejam preservar seus espaços políticos sem serem desafiados por outros atores. A acusação de que os “especialistas” não entendem o verdadeiro trabalho da polícia é um ataque não tão sutil às atividades do FBSP. A politização da segurança pública significará, frequentemente, que políticas eficazes e respeitosas não ganham votos. Os esforços das polícias que acreditam genuinamente na reforma são limitados pela cultura tradicional e repressiva e, ademais, pelas práticas hierárquicas de suas respectivas instituições. Associados à entidade que são membros de instituições policiais enfrentam barreiras consistentes quando se unem a esforços de mudança de suas instituições. Sua coragem é inspiradora.

A última década viu o estabelecimento de vários programas estaduais e políticas de segurança pública que mostram que, por um lado, é possível mudar os paradigmas tradicionais da segurança pública. Por outro lado, as mudanças que permitem transformações mais profundas e permanentes serão possíveis apenas por meio de alterações estruturais na segurança pública em nível federal. O Fórum tem sido um defensor exemplar de tais mudanças estruturais, ainda não realizadas, e continua a advogar por essa transformação fundamental.

Apesar desses desafios, é importante destacar o que o Fórum, sob a corajosa liderança de Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno, e sustentado pelo apoio incansável da equipe, proporcionou ao país. Primeiro, conferiu legitimidade ao campo da segurança pública e policiamento junto à comunidade acadêmica das ciências sociais aplicadas. Em segundo lugar, e não menos importante, promoveu a relevância dos dados, das políticas baseadas em evidências e da qualidade da pesquisa. Uma boa gestão – eficiente, respeitosa e transparente – depende de informações de qualidade e de avaliações baseadas nessas informações. Acredito que demos origem à consciência de que a ausência de dados confiáveis torna impossível a instituição de políticas de segurança pública que respondam aos problemas mais graves da sociedade.

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