Múltiplas Vozes

Falando sobre crime e violência

O papel do Jornalismo de Segurança Pública em uma cidade como o Rio de Janeiro, com o seu terrível passado colonial e escravocrata, é observar com mais atenção aspectos como o respeito aos direitos humanos e às liberdades da população negra e pobre

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Pedro Barreto Pereira

Jornalista, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, professor do Nepp-DH/UFRJ

“Cidade integrada” é o nome do novo projeto do governo do estado do Rio de Janeiro, lançado em janeiro deste ano. A promessa é reunir serviços de segurança pública, cultura, lazer, esporte, capacitação profissional, entre outros, em seis favelas das zonas norte e oeste da cidade. Uma proposta ambiciosa com um nome que poderia trazer esperança para os cariocas, cansados de viver na “cidade partida”, vendida mundo afora como “maravilhosa”. Mas como iniciativas como essa costumam ser recebidas pela imprensa especializada?

Para responder a essa pergunta talvez seja útil jogar luz sobre outras políticas similares promovidas em um passado recente. No livro “Notícias da pacificação: outro olhar possível sobre uma realidade em conflito” verifico que as matérias publicadas pelo jornal O Globo, entre 2008 e 2016, eram amplamente favoráveis à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em 38 favelas cariocas. Nesse levantamento, atestei que cerca de 60% dessas notícias referendavam o que denomino de pacote interpretativo “Lei e Ordem nas favelas”, caracterizado por propor a imposição da lei e da ordem como forma de resolução dos problemas. Outras 18% foram identificadas no enquadramento “Extensão da cidade formal”, que admite a aplicação do modelo do “asfalto” às favelas, sem considerar as especificidades locais. Esses dois pacotes admitem a utilização da violência do Estado contra moradores de favelas como meio para chegar a seus respectivos fins.

Em terceiro lugar, com 17%, aparece o modelo “Liberdades civis sob ataque”, que denuncia a violação de direitos e de liberdades. A maior parte das matérias classificadas neste pacote aparece após o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha, em 2013. A mobilização de moradores e de parte da sociedade civil nas redes sociais forçou uma mudança de enquadramento naquele momento. Depois, viriam outros casos, como o do dançarino DG, morto por policiais da UPP do Pavão-Pavãozinho, em 2014; do menino Eduardo, de 10 anos, no Complexo do Alemão, em 2015; e do jovem Eduardo Felipe, de 17 anos, no Morro da Providência, também em 2015. Em último lugar, com 2%, está o pacote “Pobreza causa crime”, que busca explicações na estrutura social para a ocorrência do crime e da violência.

Outro dado da pesquisa é a predominância de fontes ligadas ao Estado em comparação àquelas não-estatais: 57% x 43%. Ainda: a maior parte das declarações de fontes não vinculadas ao Estado não apresenta críticas às UPPs (43%), ou apresenta críticas à não imposição suficiente da força para conter o crime (30%). E mais: em 45% das matérias, apenas fontes estatais estão presentes, sem o princípio do contraditório, tão necessário ao exercício do bom jornalismo.

Embora os contextos sejam diferentes, há aspectos em comum a serem observados. Primeiro, o contexto pré-eleitoral, que costuma dar relevo à agenda da Segurança Pública, sempre prioritária para o atemorizado público das classes média e alta, que reivindicam do Estado a máxima eficiência nesta área e a mínima interferência em outras tantas. Ademais, a proposta de integrar moradores da favela e do “asfalto”, tendo a segurança como eixo. “Não é só o Estado que tem que entrar lá, o cidadão também tem que entrar lá. Ele tem que começar a ver que ele pode entrar lá, transitar, abrir algum negócio, comer lá dentro, fazer alguma compra, enfim.” A declaração é do então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e está no documentário “5x Pacificação”, de 2012. Na prática, após 2016, a Política de Pacificação foi abandonada e a cidade que se ansiava harmoniosa tornou-se ainda mais conflitiva.

De volta ao “Cidade integrada”, entendo como difícil a confiança em um projeto que pretenda congregar os cariocas através da militarização de seus espaços, quando um desses territórios é justamente o Jacarezinho, onde há cerca de um ano, 28 pessoas foram assassinadas na operação policial mais letal da história. Segundo reportagem do G1, de 31 de maio deste ano, poucas mudanças podem ser observadas naquele território após o início do novo projeto. No lugar dos equipamentos esportivos e culturais prometidos, policiais e caveirões. Denúncias de mais violações de direitos não faltam.

Ao longo das últimas décadas e de tantas políticas malsucedidas, esperamos que os profissionais das empresas de comunicação tenham aprendido lições importantes. Hoje, é inevitável a negociação com câmeras onipresentes no espaço público e suas imagens compartilhadas nas redes sociais. Nisso, há diferentes olhares possíveis, desde hashtags que clamam #vidasnegrasimportam até #todasasvidasimportam. Além, evidentemente, dos interesses políticos e econômicos das “big techs”, que fizeram ruir a ilusão de que a internet nos trouxesse a democratização da comunicação.

No entanto, o papel do Jornalismo de Segurança Pública em uma cidade como o Rio de Janeiro, com o seu terrível passado colonial e escravocrata, que nos legou um presente de desigualdade social e violência brutais, é observar com mais atenção aspectos como o respeito aos direitos humanos e às liberdades da população negra, pobre e moradores de favelas e periferias. O que se pretende aqui não é apontar saídas fáceis. Apenas colocar questionamentos a mais um projeto que se propõe a apresentar soluções, sem reconhecer equívocos históricos e emulando outros tantos similares que fracassaram ao longo da história.

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