Entre coletes e armas: os policiais presos na armadura
Compreender a construção social de valores, símbolos e cerimônias que moldam o desenvolvimento da subjetividade dos policiais contribui para uma reconstrução que é importante sobretudo para as gerações mais novas, que buscam significado e propósito na vida
Tatiane da Costa
Delegada da Polícia Federal, ex-Coordenadora da Escola Superior de Polícia/ANP/PF, mestre em sociologia pelo ISCTE-IUL/Lisboa. Graduanda de psicologia. Formada em Terapia Corporal pela Rede Core Energetics. Diretora de Gestão de Ativos da SENAD/MJ
Aline Costa Almeida Araújo
Mestre em Administração pela Universidade de Brasília. Especialista em Ciências Policiais pela Escola Superior de Polícia Federal. Graduada em Direito pela Universidade do Distrito Federal. Professora da Academia Nacional de Polícia. Escrivã da Polícia Federal
O trabalho promove a interação e o desenvolvimento pessoal, permitindo a integração com a natureza e a própria transformação do indivíduo (Lhuilier, 2013). No entanto, a falta de condições para reflexão pode limitar a construção da identidade e prejudicar o convívio coletivo, resultando em estresse e doenças mentais. (Freitas, 2000). Nesse sentido, os policiais enfrentam altos níveis de sofrimento e estresse devido à necessidade de lidar com situações imprevisíveis e incontroláveis. (Bradford & Quinton, 2014; Desjardins et al., 2019).
Além das demandas da atividade policial, tais como trabalho em regime de plantão, lotações iniciais longe de amigos e familiares e constante desconfiança em relação ao outro, estudos mostram que as características da organização e os comportamentos dos membros da instituição também são fontes de estresse para os policiais (Demou et al., 2020; Reiner, 2004, Monjardet, 2003). É essencial compreender o contexto organizacional para identificar o papel das instituições na prevenção e recuperação de doenças mentais, além de reconhecer sua contribuição para essas condições (Shane, 2010; Siqueira, 2009). Este artigo examina como a construção da identidade social do policial influencia os fatores estressores enfrentados pelos policiais.
Além da complexidade do trabalho, os policiais enfrentam o estigma social, que os rotula no contexto de “Dirty work”, cunhado por Hughes (1962), isto é, a mesma sociedade que delega a atividade de “trabalho sujo” a determinadas agentes, também os estigmatiza, o que leva a identidades fragmentadas e em constante mudança. O policial não se percebe aceito pelo que faz e como faz, já que sua atividade profissional implica restrição de liberdades individuais (prisão, confisco de bens, vigilância, quebra de sigilo de dados, escutas telefônicas) (Reiner, 2004). Para minimizar o estigma, as organizações policiais desenvolvem formas de legitimar suas atividades e oferecer um senso de propósito aos seus profissionais (Dias, et al., 2023).
A construção do imaginário social organizacional na polícia se inicia com a ideia de super-herói, transformando o cidadão comum em uma figura de coragem e honra, como refletido em hinos e juramentos. Para os policiais, há uma preocupação com a eficácia do trabalho. O ofício é uma missão com um propósito significativo, frequentemente associado ao “combate” ao mal e à ideia de “dar segurança”, o que leva à frustração quando não alcançam os resultados (Reiner, 2004). Os policiais podem se distanciar emocionalmente, adotar uma postura cínica, abusar de álcool e desenvolver defesas emocionais que bloqueiam sentimentos dolorosos para lidar com a impotência. Essa impotência em relação a questões sociais contribui para o estresse e o cinismo, associando-se aos casos de burnout (Burke et al., 2007; Violanti, 2007).
Além disso, a visão constritiva da realidade no trabalho policial faz com que o agente, ao primeiro contato com um possível crime, rapidamente classifique a situação como infração penal ou não. Essa visão binária (bem x mal, certo x errado) desenvolve uma inflexibilidade cognitiva, dificultando a percepção de alternativas para problemas e contribuindo para o risco de suicídio em desafios profissionais ou pessoais (Maris, 2019; Saraiva, 2010; Shneidman, 1987).
Esse processo leva à substituição gradual da identidade pessoal pela identidade imposta pela organização (Dias et al., 2023). Admitir problemas emocionais e psicológicos, nesse contexto, é visto como uma fraqueza, em contraste com a imagem de herói promovida pelas organizações (Shane, 2010). Essa pressão para manter a autoaprovação e superar desafios contribui para o desgaste psicológico e o surgimento de doenças mentais (Enriquez, 1997, Gaulejac, 2007). Embora o ambiente policial esteja associado ao sofrimento, as organizações podem desempenhar um papel importante na prevenção e recuperação dessas condições.
As estratégias organizacionais perpassam necessariamente pela mudança da cultura organizacional. Estudos mostram que policiais treinados para adaptar suas respostas ao estresse desenvolvem maior resiliência (Andersen et al., 2024). Além disso, treinamentos que abordam saúde mental e estigmas ajudam a reduzir a resistência dos policiais em buscar apoio profissional (Bell & Eski, 2015). Embora a estrutura hierárquica e o comando vertical sejam necessários nas atividades operacionais, deve-se refletir sobre os limites dos poderes disciplinador e hierárquico para evitar invasões na vida privada dos policiais e a criação de categorias diferenciadas de valor entre os membros da organização.
O desenvolvimento da subjetividade dos policiais, por meio de uma reflexão sobre os desafios da profissão, pode levar à reavaliação dos valores, símbolos e cerimônias que foram socialmente naturalizados, mas que foram construídos socialmente. Compreender essas construções permite a reconstrução desses valores, sendo principalmente importante entre as gerações mais novas que buscam significado e propósito na vida.