Energia masculina, a que custo?
Série Adolescência é alerta para o papel das redes sociais na formação de masculinidades violentas. Em cenário marcado por ataques a escolas, crimes de ódio e crescente radicalização de adolescentes em plataformas digitais, o debate sobre regulação digital e responsabilização das Big Techs torna-se urgente. Afinal, que tipo de “energia masculina” estamos cultivando – e a que custo?
Cauê Martins
Doutor em Sociologia pela USP e pesquisador no Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O lançamento da minissérie inglesa Adolescência reacendeu discussões urgentes sobre o sentido do uso das redes sociais na infância e adolescência, sobretudo no que se refere à configuração tóxica de masculinidades misóginas e violentas que têm encontrado nas plataformas digitais frouxamente reguladas um terreno fértil para sua proliferação e radicalização. Num contexto de crescente preocupação com o papel desempenhado por essas plataformas na disseminação de discursos de ódio e incitação a crimes de violência extrema, a produção da Netflix nos faz acompanhar, sem cortes de fácil monetização, o impacto e as consequências desse processo na formação de subjetividades juvenis, sobretudo masculinas.
Nos últimos anos, os resultados de pesquisas em psicologia social e ciências sociais romperam os muros da academia e se tornaram diagnósticos incontornáveis do estado de coisas na era digital. A professora Shoshana Zuboff, de Harvard, examina o funcionamento do capitalismo de vigilância, que se baseia na extração ilimitada e desregulamentada de um “excedente comportamental” dos usuários de tecnologias algorítmicas para especulação financeira em “mercados de futuro de comportamento”, com graves consequências para as liberdades civis e práticas democráticas. Por sua vez, Jonathan Haidt, professor na NYU, analisa a transformação da infância nos anos 2010, baseada crescentemente em smartphones (em detrimento do brincar livre), e as profundas consequências na socialização e no desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes, agravando transtornos internalizantes (ansiedade, depressão) entre meninas e externalizantes (agressão, intimidação) entre meninos. Haidt recomenda o banimento completo do uso de smartphones nas escolas, a proibição de seu uso por crianças e adolescentes menores de 14 anos e a restrição do uso de redes sociais a menores de 16 anos.
Essas pesquisas descrevem com eloquência as motivações e os desdobramentos nocivos do uso irrestrito das redes algorítmicas no tempo presente e nos ajudam a compreender o grave fenômeno do crescimento da violência extrema entre adolescentes. No Brasil, os 25 ataques a escolas ocorridos em 2022 e 2023 ilustram bem esse cenário. Quando olhamos não só para os casos consumados, mas também para ameaças e tentativas, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do INEP/Ministério da Educação aponta que 12,6% das escolas brasileiras relataram, em julho de 2023, ter sofrido ameaças ou tentativas de ataques nos 12 meses anteriores à pesquisa. O que a investigação desses episódios vem sinalizando é a associação desses casos a grupos extremistas, em geral racistas e misóginos.
Entre nós, a recepção de Adolescência coincidiu com a impactante entrevista da juíza da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri, ao podcast Fio da Meada. Em sentido convergente ao visto tanto na série ficcional como nos eventos reais de violência extrema nas escolas brasileiras, Cavalieri alerta para um fenômeno concreto que tem observado em sua atividade profissional: a mudança no perfil dos adolescentes que ingressam no sistema judiciário, cada vez mais associados a crimes de ódio, como bullying e cyberbullying, feminicídio e ataques a escolas, e arregimentados e radicalizados nas redes sociais.
Diante desse cenário, o que fazer? No curto prazo, o serviço de inteligência e investigação da Polícia Federal contra redes de incitação à violência tem surtido efeito na intimidação de tentativas, redução de ataques consumados e responsabilização de agressores e seus responsáveis legais. Passamos de 15 ataques, em 2023, para dois, em 2024. Mas, não bastam medidas repressivas. A médio prazo, a regulação das redes sociais é essencial para conter o avanço de discursos extremistas e grupos misóginos que cooptam esses jovens, sempre homens, em situação de vulnerabilidade. Infelizmente, o panorama político internacional atual aponta para o oposto: a permissividade das grandes plataformas diante do discurso de ódio – muito lucrativo para um capitalismo de vigilância que necessita de usuários engajados, ainda que numa bolha de ressentimento – e sua associação explícita a governos populistas de extrema direita.
A longo prazo, precisamos lidar, enfim, com uma crise estrutural nas masculinidades. Certo vazio existencial deixado pelo esfacelamento de modelos tradicionais e idealizados de masculinidade tem levado alguns jovens a buscarem pertencimento em comunidades online misóginas e violentas. Ao promoverem uma visão parcial e estreita da realidade, esses espaços fornecem uma narrativa que alimenta a radicalização e a violência. Nesse contexto, o ato falho dos homens de Vale do Silício é emblemático. Ao ressentir-se de uma suposta falta de “energia masculina” na cultura empresarial dos dias de hoje, Mark Zuckerberg revela o que não falta nem um pouco em suas redes sociais. Uma energia que se traduz em ódio e misoginia. Enquanto os líderes das Big Techs ignorarem as consequências de suas plataformas, afrouxarem suas responsabilidades na moderação de discursos de ódio, arvorando-se nessa enigmática “energia masculina” que habita suas mentes criativas e disruptivas, a sociedade seguirá lidando com os efeitos devastadores de uma “energia masculina” real e tinta de sangue.