Múltiplas Vozes 11/06/2025

Em tempos de PEC da Segurança Pública, falar de Guarda Municipal é pouco para os municípios: o caso de Niterói

Cada prefeito pode, com o seu conhecimento mais apurado do território e suas dinâmicas, desenvolver de fato programas que atingirão as principais causas da violência e da criminalidade no Brasil

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Paulo Henrique Azevedo de Moraes

Coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro; Mestre em Justiça e Segurança (UFF); Doutorando em Sociologia e Direito (UFF)

Nos últimos meses, um do temas mais discutidos do país é a Proposta de Emenda à Constituição Federal elaborada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Tal questão é de grande relevância e reflete o que a opinião pública tem expressado. Uma pesquisa Genial/Quest, realizada entre 27 e 31 de março de 2025, mostrou que, para 29% dos cidadãos brasileiros, a segurança pública é o maior problema do país.

Diversos artigos têm discutido as propostas inseridas na PEC; alguns apoiando suas iniciativas, outros refutando pontos e até julgando-a acanhada, tamanho é o problema e o grau de sua complexidade.

Contudo, um dos aspectos que mais me impressionaram é a reafirmação velada de que o problema da segurança pública se resolve com uma arquitetura de instituições policiais. A divisão de competências, a criação ou transformação de instituições policiais, planos e controles da atuação dessas corporações são a base da proposta, assim como o é o atual texto constitucional. Resumindo, não há grandes novidades e, apesar de alguns avanços, caso sejam aprovados, o que podemos esperar como resultado não deve ser muito diferente daquilo que temos experimentado nestas últimas décadas: o avanço do crime organizado.

Uma das pequenas mudanças apresentadas é o chamamento aos municípios para participarem da empreitada. Inicialmente, forçado pela decisão do Supremo Tribunal Federal, o governo propôs a ampliação do papel das Guardas Municipais naquelas cidades que decidirem instituí-las, já que isso não é uma obrigação.

Mas resumir a atuação dos municípios à criação de GCM é um desperdício e uma demonstração clara daquilo que já citamos, a manutenção da ideia de que segurança pública se faz somente com corporações policiais.

Para demonstrar o quanto o município pode fazer, além de criar sua Guarda Municipal, vamos usar o exemplo da cidade de Niterói, situada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. No ano de 2015, Niterói tinha uma taxa de homicídios dolosos de 18,83 por 100 mil habitantes, enquanto a cidade do Rio de Janeiro, sua vizinha, tinha 18,59, segundo os dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Numa iniciativa pouco comum entre cidades de médio e grande porte, Niterói estruturou uma série de programas de prevenção à violência, cujo conjunto foi chamado de Pacto Niterói contra a violência, lançado em agosto de 2018, após seis meses de estudos e de um diagnóstico bem elaborado. No ano de seu lançamento, os números de homicídios colocavam Niterói como mais violenta do que a capital do estado, com uma taxa de 22,44 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto o Rio de Janeiro registrou 20,73.

Dentre os 19 programas iniciais do Pacto contra a violência, encontramos ações que visam à melhoria da educação parental, outras que trabalham a educação socioemocional nas escolas, a promoção de atividades de cultura, esporte e ensino no contraturno escolar e programas de geração de renda combinados com formação profissional para adolescentes, por exemplo.

O Pacto, como ficou conhecido, também possui programas mais “tradicionais”, como o reforço do policiamento, a ampliação da utilização de ferramentas tecnológicas no monitoramento da cidade e investimentos na qualificação da Guarda Municipal.

Passados quase sete anos do início deste trabalho, o município vem colhendo os frutos e, só para falar do exemplo do qual parti neste texto, as taxas dos homicídios dolosos caíram para 7,26 (2023) e 7,47 (2024) por 1oo mil habitantes, enquanto a cidade do Rio de Janeiro registrou 16,37 (2023) e 15,50 (2024), de acordo com o ISP/RJ. Os números, que eram iguais há dez anos e chegaram a ser superiores em 2018, hoje representam menos da metade da taxa da capital, mesmo esta tendo reduzido consideravelmente seus próprios índices.

E não foram só os homicídios que despencaram mais de 66%; observem o quadro comparativo abaixo, com as taxas por 100 mil habitantes, referentes aos roubos de rua e aos roubos de veículos em Niterói e na cidade do Rio de Janeiro, nos anos de 2014, 2018 e 2024.

Perecebam que os números da década passada eram próximos, com as cidades se alternando no posto de território com maior número de roubos.

Os números mais recentes mostram que a cidade do Rio de Janeiro melhorou os seus números, como ocorreu também com os homicídios dolosos, o que pode nos indicar uma melhoria na atuação das polícias ou algum outro fator geral, que, paralelamente, pode ter acontecido também em Niterói.

Mas, analisando os números da antiga capital fluminense, a redução foi muito expressiva e as diferenças entre as cidades passou a ser enorme. A taxa de roubo de rua em Niterói corresponde a pouco mais de 40% da taxa apurada do outro lado da Baía de Guanabara, enquanto a taxa de roubo de veículos é pouco mais de 25% da taxa da capital. Isso mesmo, se você atravessar a ponte Rio-Niterói, sentido Rio de Janeiro, quadruplica o seu risco de ter o carro roubado!

Pode-se alegar que o espaço territorial niteroiense é menor, assim como o contingente de sua população, em relação à atual capital do estado. Mas o que a tabela mostra, reafirmo, é que, a despeito de tais aspectos, as cidades exibiram índices muito próximos por muitos anos. Tal situação hoje não mais se verifica, sendo o objetivo deste texto apresentar elementos para a compreensão deste fenômeno.

Certamente que, observando com mais cuidado esses números, é natural surgirem muitas perguntas. Quando falamos em roubos de rua e de veículos, são consideráveis os impactos causados pelo reforço no policiamento e pelo uso de ferramentas tecnológicas no monitoramento da cidade, decorrentes dos investimentos municipais previstos no Pacto contra a violência. Isso fica evidente, no caso de Niterói, quando se considera a instalação de um novo sistema chamado “cercamento eletrônico”, o qual consiste na utilização de câmeras OCR no monitoramento das principais vias da cidade, acompanhado de um protocolo de atuação conjunta das polícias civil e militar, além da Guarda Municipal, que se deu em maio de 2019. Entretanto, quando falamos na redução de homicídios, os impactos do aumento da presença ostensiva da polícia são bem menores. E é aí que os municípios podem fazer ainda mais a diferença.

Projetos de prevenção à violência, com ações nas escolas, junto às famílias, de proteção às mulheres, de melhorias das condições urbanas, dentre tantas que estão no escopo das políticas públicas municipais, pode-se avançar bastante na redução dos números da violência no Brasil. Ao considerar os números da violência no planejamento de suas mais diversas ações, os municípios podem obter resultados que irão muito além daquilo que se pode imaginar num primeiro momento. Uma praça pode ser mais do que um simples espaço de lazer, como também importa a implantação e manutenção da iluminação pública em locais em que as famosas “manchas criminais” se apresentam, por exemplo.

Assim, cada prefeito pode, com o seu conhecimento mais apurado do território e suas dinâmicas, desenvolver de fato programas que atingierão as principais causas da violência e da criminalidade no Brasil e uma Proposta de Emenda à Constituição não pode se dar ao luxo de, simplesmente, ignorar esse potencial.

Espero que Niterói possa servir de exemplo para que nossos congressistas aproveitem a oportunidade e estruturem um sistema verdadeiramente federativo e amplo de redução da violência em nosso país, explorando o potencial de cada ente da federação, numa conjugação de esforços de todos, pois o desafio é enorme e complexo, e o desenho constitucional atual não vem sendo suficiente, nem eficiente, para prover a segurança do povo brasileiro.

 

 

 

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