Multiplas Vozes 26/10/2022

E agora, Brasil ?

Após três décadas de regime democrático, estamos diante do risco de retrocesso institucional em função de uma promessa não cumprida, a de garantir segurança pessoal e patrimonial aos cidadãos

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Luis Flavio Sapori

Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública

Estamos às vésperas da mais importante eleição presidencial da história recente do país, aquela que definirá os rumos da nossa democracia. Aliás, está em questão a própria persistência da democracia. Não há dúvida de que a eventual vitória do bolsonarismo implicará mandato presidencial pautado por nítido viés autoritário, passível de provocar mudanças institucionais que permitam sua perpetuação indefinida no poder, assim como ocorreu na Venezuela, na Hungria, na Turquia e na Rússia. A despeito das contradições do petismo, a vitória de Lula significará a prevalência dos parâmetros democráticos na vida nacional.

No que diz respeito à segurança pública, são também nítidas as diferenças entre ambas as perspectivas  políticas. Caso se concretize a reeleição do Bolsonaro, teremos um país muito mais armado e com a acentuação da severidade da legislação penal e da execução penal. A redução da maioridade penal voltará à agenda governamental, assim como o aumento das restrições ao regime progressivo de cumprimento da pena. Ao defender a ampliação dos excludentes de ilicitude, Bolsonaro sinaliza  maior tolerância com a letalidade policial.

Em eventual governo Lula, por sua vez, a política de segurança pública não deverá ser muito diferente daquela implementada quando comandou o país, entre 2003 e 2010. As principais diretrizes tendem a ser a priorização da prevenção social da criminalidade, acentuação dos investimentos na qualificação dos policiais e implementação do sistema único de segurança pública.

A proposta bolsonarista tem amplo apelo popular, sendo forte aspecto potencializador de sua candidatura e, inclusive, legitimador do viés autoritário de governo em caso de vitória. Não tenho dúvidas de que o bolsonarismo se alimenta em boa medida dos sentimentos de medo e insegurança muito disseminados em amplos segmentos da sociedade brasileira. Sua pregação mais recente em favor da redução da maioridade penal, por exemplo, coaduna-se com o pensamento de 66 % dos brasileiros, conforme revela pesquisa recente. Além disso, não são poucos os brasileiros que acreditam que “bandido bom é bandido morto”.

Essa questão deve merecer reflexão mais atenta. Após três décadas de regime democrático que se inaugura com a Constituição de 1988, estamos diante do risco de nítido retrocesso institucional em função de uma promessa não cumprida pela democracia, qual seja, garantir segurança pessoal e patrimonial aos cidadãos. Não quero dizer com isso que o bolsonarismo se limita à dimensão da insegurança pública. Há outros elementos ideológicos que conformam esse verdadeiro movimento de extrema-direita que tomou corpo em anos recentes. Ressalto, todavia, que a persistência de elevados patamares de criminalidade violenta na sociedade brasileira nas últimas décadas contribuíram  para a adesão popular ao bolsonarismo.  E os crimes violentos envolvem não apenas homicídios, como também estupros e principalmente roubos. Esse é o crime que mais suscita o sentimento de insegurança nas pessoas.

A sobrevida da democracia no Brasil depende, num primeiro momento, da vitória do Lula. Mas não basta. Caso seja eleito, o desafio de construir um país menos violento é primordial, algo que não conseguiu em sua primeira passagem pela presidência. A política de segurança pública a ser formulada e implementada deve ser efetiva na redução drástica dos principais indicadores de criminalidade violenta. Para tanto, é preciso superar o “cacoete ideológico” que insiste em conceber o crime na sociedade brasileira como produto exclusivo das injustiças sociais.  Esse equívoco marcou toda a gestão petista de outrora. A dimensão da impunidade deve ser incorporada ao diagnóstico do fenômeno, reconhecendo que o baixo grau de certeza da punição impacta e muito a dinâmica da violência no cotidiano. Nesse sentido, a diretriz da repressão qualificada do crime deve ser incorporada necessariamente à política de segurança pública.

Democracia e segurança pública estão intrinsecamente entrelaçadas. Muitos cientistas políticos brasileiros ainda não perceberam que a legitimidade das regras do jogo democrático dependem e muito  da intensidade da  disseminação do sentimento de medo e insegurança na população. Parafraseando Steven Levitzky e Daniel Ziblatt, democracias também morrem quando a violência é crônica na dinâmica cotidiana da sociedade.

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