Ítalo Barbosa Lima Siqueira
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. É pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais e do Laboratório de Estudos da Violência
As recentes críticas de setores conservadores contra políticas penais que visam a racionalizar o sistema prisional brasileiro ignoram o histórico em que as prisões tiveram efeito emblemático no aumento da violência, e não na sua diminuição. Essa negligência criou oportunidades, ao longo do tempo, para que se estabelecesse o abrigo estatal da barbárie em suas formas mais acentudas, simbolizadas pela normalização de chacinas prisionais, rebeliões violentas e uma série de violências que extrapolam os muros das prisões, manifestando-se de forma acentuada na insegurança vivida nas cidades brasileiras.
A visão simplista do “prender mais e melhor” negligencia o fato de que o Estado, ao optar por conviver com violações massivas de direitos humanos, compromete sua própria legitimidade[1]. A normalização da violência institucional em prisões reflete a incapacidade histórica de solucionar os déficits sociais que perpetuam a exclusão. Essa retórica é utilizada para contrariar políticas penais que buscam adotar respostas integrais de reintegração social, ignorando que matar ou estuprar não são os únicos motivos que levam uma pessoa à prisão.
A reação punitiva frequentemente coloca o desencarceramento como uma política equivocada, em nome de um direito penal rígido. No entanto, tal posicionamento busca formar opinião contra os avanços identificados no campo penal e da justiça criminal, que passaram a considerar a situação crítica dos sistemas prisionais estaduais.
Ignora-se, por fim, que o Estado investe continuamente na ampliação de quadros policiais, na militarização e na criação de novas forças de combate ao crime – como a polícia penal e as guardas municipais – enquanto o crime prossegue fortalecido e diversificado, articulando-se dentro e fora do Estado. Afinal, é lugar comum a noção de que as prisões foram palco da intensificação de crimes e não da sua contenção.
Todavia, as políticas penais estão em interação direta com a segurança pública, com o sistema de justiça e, ainda de forma muito desarticulada, com as políticas públicas sociais. Nessa linha, as políticas judiciárias retratadas na Súmula Vinculante 56, bem como em medidas alternativas à prisão, e o regime semiaberto com monitoração eletrônica, demonstram um esforço significativo para uma abordagem criminal e penal que esteja em consonância com essa interação. Não é correto afirmar que houve um desencarceramento em larga escala, tampouco há evidências de que isso acontecerá em um futuro próximo. Na realidade, estamos diante da expansão das prisões e do seu controle pelo viés da segurança pública.
A barbárie nas prisões bateu na sua porta, faz tempo
Em desacordo com o que seria esperado pelos investimentos feitos e pelo crescimento dos contingentes de funcionários públicos da repressão, o crime apresenta um fortalecimento e continua a sua busca por diversificação econômica e por novos mercados[2].
Normalizamos a violência como um meio para atingir a segurança em bairros e instituições prisionais. A GLO, a Lei de Organizações Criminosas, a Força Nacional de Segurança Pública e o Sistema Penitenciário Federal constituem medidas implementadas e justificadas pelo policiamento excepcional, que atualmente é percebido como uma resposta habitual a conflitos, evidenciando o intervencionismo e a militarização na segurança pública. Fatores que reconhecemos como essenciais para que as Unidades Federativas implementem ações emergenciais a cada nova crise que ameaça a legitimidade do Estado diante do banditismo e da barbárie. O resultado foi a eclosão do problema penitenciário, transformado em um problema social, humanitário e econômico.
Prendemos cada vez mais e falhamos na garantia da segurança pública para todos e todas, pois a institucionalidade convive com a violação sistemática dos direitos humanos, que se manifesta por meio da tortura, dos maus-tratos e da corrupção generalizada do sistema prisional. Existem evidências significativas de que, para a população de baixa renda, a resiliência se torna uma alternativa para enfrentar a severa insegurança vivenciada diariamente, no contexto da abordagem do “atira primeiro, pergunta depois, e prende sempre que possível”. Portanto, nos âmbitos da segurança pública e do sistema prisional, ainda é preciso superar o paradigma da violência e do racismo que se consolidam como componentes intrínsecos do sistema de justiça criminal.
A política de ignorar a barbárie das prisões, pintada como uma solução para diminuir a criminalidade, não consegue impedir que as condições nas prisões se transformem em um verdadeiro catalizador de problemas. Nesse cenário, o desencarceramento não é uma ameaça à justiça ou um espantalho da impunidade, mas um imperativo racional de controle de curto e longo prazo diante de uma realidade degradante e uma forma de resgatar a legitimidade das instituições desgastadas pelos seus erros e excessos.
Surge a indagação sobre qual será o momento decisivo que levará o Estado, independentemente da cor do seu governo, a adotar o tratamento justo e adequado aos direitos fundamentais de todos seus cidadãos e cidadãs, ao mesmo tempo em que não se torne conivente com a violência que é exercida por suas próprias instituições.
Após nove anos de análise, o Supremo Tribunal Federal (STF) divulgou a decisão definitiva que determina a elaboração de um plano de enfrentamento ao Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Isso se dá no mesmo momento em que o país convive com o aprofundamento da militarização da segurança pública e dos territórios, notavelmente em regiões urbanas consideradas como perigosas e estigmatizadas como zonas de conflito e da atuação do crime. Como avançar na política de segurança pública para todas as pessoas sem deslizar na falsa dicotomia entre segurança e direitos humanos?
Um ano para mudanças decisivas
O Plano Pena Justa, lançado de forma definitiva em fevereiro de 2025, traz consigo uma importante oportunidade para redefinir as práticas e políticas dentro do sistema prisional brasileiro. Nesse contexto, é crucial enfrentar de forma assertiva a tortura e os maus-tratos, inclusive ao reconhecermos que essas práticas ultrapassam a violência física e psicológica direta.
Muito além da visão positivista do direito penal, tortura e maus-tratos também se manifestam por meio das condições desumanas de custódia. Isso se desconsideramos que o momento crítico da violência estatal é praticado no momento da prisão. A superlotação crônica das unidades prisionais, a falta de acesso a recursos básicos como água potável, alimentação adequada e higiene mínima, e a manutenção de um ambiente insalubre e degradante, motivam uma análise da questão prisional ademais do incômodo alarmista com políticas desencarceradoras que ainda são tímidas e pouco praticadas.
Em uma sociedade democrática, a tortura deveria ter sido erradicada, e não normalizada em nome do combate ao crime. No Brasil, embora tenham ocorrido progressos expressivos na área legislativa, exemplificados pela Lei nº 9.455/1997 e pela criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), persistem dificuldades institucionais no enfrentamento e na prevenção dessa prática, especialmente pela incipiente implementação de mecanismos estaduais. Essa situação decorre da ausência de compromisso por parte das autoridades em empregar recursos para a criação dos Sistemas Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, ao mesmo tempo em que confundem a valorização e a legitimidade da atividade policial com a autorização para torturar e matar em nome da lei.
Discutir prisões no Brasil é falar sobre a subnotificação de incidentes de tortura e maus-tratos, impulsionada pelo temor de represálias por parte das vítimas e pela letargia das instituições na responsabilização. Ademais, é nesse cenário que o Plano Pena Justa deve atuar como um divisor de águas ao delinear um compromisso que ultrapassa noções simplistas e desinteressadas para os problemas enfrentados no sistema prisional.
Ao incluir questões como condições indignas de custódia de pessoas privadas de liberdade, falta de acesso a direitos básicos, o Plano Pena Justa reafirma a centralidade da dignidade humana e promove uma nova abordagem para a gestão penitenciária no Brasil.
O Plano ainda trata da racionalidade e controle da porta de entrada no sistema penal, trazendo medidas proporcionais de responsabilização conforme o crime praticado. Apresenta propostas de formação dos funcionários públicos do Executivo e do Sistema de Justiça e prevê ações para não repetição das atuais condições. Estudar o Pena Justa é obrigação de todos os servidores da Política Penal, da Segurança Pública, das Políticas Sociais e Econômicas. Todos têm tarefas na sua implementação e devem ajudar a mudar o estado de baixa civilidade nas prisões no qual nos encontramos.
Já sabemos aonde nos levaram as paixões punitivistas vigentes. Que tal fazermos algo diferente?