Diretrizes básicas para a arquitetura prisional: um novo capítulo na “casa dos mortos”
A eliminação de tomadas e de pontos de energia do interior e das proximidades de celas dos presídios do Brasil instiga questionamentos com relação às condições de habitação dos novos estabelecimentos prisionais
Ana Carolina da Luz Proença
Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, bolsista CAPES e mestra em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle (Canoas-RS), integrante do GPESC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança Pública e Administração da Justiça Penal. Integrante do Observatório de Segurança Pública da PUCRS
Imagine um presídio com milhares de homens e mulheres que têm diante de si dias de prisão provisória até o julgamento, ou longos e dolorosos anos de reclusão devido à condenação pelo delito praticado. Tempo que passará sendo vivido no interior de uma cela, em forma de gota a gota em uma paisagem que é só outono.
Ainda que a reflexão acima tenha sido inspirada na obra “Recordações da Casa dos Mortos”, um romance do século XIX escrito por Dostoiévski, a realidade prisional daquela época não é diferente, em vários aspectos, da atual. Embora seja fundamental um zelo por parte da segurança pública, judiciário e administração penitenciária com a vida das pessoas custodiadas, a projeção do futuro para quem está restrito de liberdade parece ser um tema que perde a preferência diante da prática cultural punitiva que se intensifica, em determinados momentos, também por questões, momentos e discursos políticos.
Não é incomum perceber que a vontade de punir é um sentimento desenvolvido culturalmente que vai contra o instinto de (sobre)vivência dos indivíduos. Pune-se sem piedade, sem muita reflexão e razoabilidade, até o dia em que o usuário do sistema for seu familiar. A intenção aqui não é convencer que há o lado bom e outro sombrio; errado ou certo. É transgredir os julgamentos moldados, preconcebidos sem o conhecimento da realidade e com reflexões abissais.
Dentre vários assuntos tratados nos últimos anos no âmbito prisional, mais um capítulo foi acrescentado quando o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, estabeleceu medidas para eliminar tomadas e pontos de energia do interior e das proximidades de celas dos presídios do Brasil.
A norma visa inibir o uso de aparelhos celulares pelos apenados e foi incluída em uma resolução (n.º16) do CNPCP que estabelece “diretrizes básicas para arquitetura penal”. A determinação é vista como uma medida de segurança contra a comunicação entre apenados e o mundo externo, especialmente de modo a evitar o crime organizado. O que é uma justificativa de grande importância para a questão da segurança pública.
Trata-se de uma importante restrição como forma de evitar o uso de aparelhos celulares, drones e outros possíveis aparelhos que possam auxiliar a comunicação com o mundo externo e até comandar crime de dentro da própria prisão.
No entanto, a inexistência de tomadas de energia elétrica nas celas das novas penitenciárias passa a instigar questionamentos com relação às condições de habitação dos novos estabelecimentos prisionais. Não será mais possível utilizar cafeteiras, ventiladores e outros objetos elétricos que antes integravam a rotina de sobrevivência, embora não ofereçam riscos, devido à ausência de tomadas.
Pode ser que essas se pareçam com consequências banais aos olhos de quem não é atingido pelo sistema, e que, com sede de vingança, pensa apenas em punir, sem medir as consequências que decisões desse tipo podem acarretar para o futuro. Como sustenta Dostoiévski, usufruir da possibilidade de viver o presente é necessário para que se possa pensar em futuro. No entanto, para quem está aprisionado, a vida permanece em suspensão, num verdadeiro processo de mortificação, que anula a possibilidade do indivíduo até na mínima liberdade de agir, eliminando o impulso vital mesmo nas coisas mais básicas do cotidiano.
Um ponto importante, que levantou considerações e merece destaque, diz respeito às condições de temperatura durante o período mais quente do verão e até mesmo no mais frio, nas regiões mais ao Sul, por exemplo. Afinal, são várias pessoas dividindo a mesma cela, em condições muitas vezes insalubres, que se intensificam e se agravam devido às temperaturas, colocando em risco a saúde e a vida dos (as) apenados (as).
O contraponto utilizado contra o argumento acima é que o concreto usado na construção dos novos presídios é de alto desempenho, moldado sobre fibras de polipropileno, o que proporciona um aspecto menos denso às estrutura, embora mais resistente do que o concreto armado sobre ferragem. Ademais, o material promete baixa transferência térmica e não se fragmenta em pedaços, evitando que possa ser transformado em armas.
O fato é que, mesmo com tais fundamentos, que podem configurar um cenário mais positivo, no Rio Grande do Sul, por exemplo, já houve reclamações dos novos estabelecimentos prisionais construídos no novo padrão “modelo”. Os relatos das falhas estruturais, calor, frio e umidade excessiva não provieram somente dos familiares e apenados. Há constatações nesse sentido, feitas por magistrados em inspeções, e inseridas em relatório.
Embora sejam fundamentais para a essência do apenado, a projeção do futuro e o dia de sua liberdade, não é apenas isso que move a vida. Afinal, na ausência da liberdade, só se tem o agora. Dentro dos cenários aqui descritos, não se obtém perspectiva de melhoria, apenas de restrição ainda maior da vida. Não há boa perspectiva de vida sem um presente razoável. Não se pode pensar no(a) apenado(a) como um ser que se habitua a tudo, mas como um ser que precisa de alguma perspectiva. Na Casa dos Mortos, o ócio é coletivo e a vontade é suprimida a um ponto de desumanização.
A mortificação da vida dos custodiados jamais poderá ser utilizada como princípio da administração penitenciária sob alegação de segurança pública. Há de se verificar o equilíbrio das escolhas e ações sem desacolher as garantias fundamentais. Afasta-se a ideia aqui de que o Estado deva relaxar e fazer concessões que acabam significando a possibilidade de apoio às operações de grupos criminosos.
Ao invés disso, reforça-se a obviedade do que já vem sendo discutido e defendido por muitos: o respeito aos Direitos Humanos e à integridade física dos(as) apenados(as) durante a execução da pena. E isso parece estar cada vez mais distante de acontecer.