Múltiplas Vozes 21/09/2022

Desvendando a Esfinge: E se o crime existir?

Aperfeiçoar as ferramentas para a alocação adequada do policiamento ostensivo, investir em inteligência policial, garantir um processo penal em que direitos e garantias sejam respeitados e que a execução da pena ocorra dentro da lei são desafios cuja concretização é pressuposto da legitimidade social das polícias e da justiça penal

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Professor titular da Escola de Direito da PUCRS, membro do INCT-InEAC

Fernanda Bestetti de Vasconcellos

Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, membro do INCT-InEAC

E se o crime existir?” é o título de uma obra (pequena no tamanho, gigante no conteúdo) do grande sociólogo do direito pernambucano Luciano Oliveira. Nela, o autor coloca em questão os pressupostos epistemológicos das teorias da rotulação, da criminologia crítica e do abolicionismo penal, para sustentar que tanto as abordagens microssociológicas do interacionismo simbólico quanto as macrossociológicas do materialismo histórico falham ao minimizar a importância do delito como fenômeno social.

Ao caracterizar o crime como uma construção social, levada adiante por “empresários morais”, ou estabelecer conexões ad hoc entre o sistema capitalista, a criminalidade e o controle do crime, tais teorias, produzidas especialmente a partir da década de 60 do século XX, cumpriram um importante papel de denúncia do funcionamento autoritário dos mecanismos de controle punitivo, desde a criminalização primária (produção legislativa) até a criminalização secundária (atuação dos powerful reactors – instituições de controle). Expuseram seu padrão de atuação seletivo e muitas vezes violento e abusivo, sua apropriação por interesses políticos (muito comum em regimes autoritários), e todos os limites da resposta punitiva, pouco eficaz para a redução da criminalidade e contraproducente para a reinserção social de condenados.

Desde esse giro epistemológico, o debate criminológico nunca mais foi o mesmo, já que deslocou  para o centro das atenções o funcionamento das instituições de controle, assim como contribuiu para a sua deslegitimação, levada às últimas consequências pelos chamados movimentos abolicionistas, tanto da pena, quanto das próprias polícias. A obra de Michel Foucault veio acrescentar elementos para a desconstrução do poder punitivo, inclusive de suas bases fundadas na ciência moderna.

Hoje, com o devido distanciamento histórico, não é mais possível deixar de lado as insuficiências deste(s) paradigma(s). Se há excessos do legislador na criminalização de condutas que não deveriam merecer a tutela penal, sendo a mais significativa a questão do consumo de drogas, assim como certos delitos ligados a padrões ou escolhas morais ou modos de ser de determinados grupos sociais, é forçoso reconhecer que há uma imensa gama de condutas que precisam sim da interdição estatal por meio da sanção penal (com todas as suas mazelas e efeitos colaterais). Para não nos alongarmos, basta referir os delitos contra a vida, a violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças e idosos, o racismo e a homofobia, os crimes sexuais de toda ordem, os crimes em ambientes virtuais, a subtração de recursos públicos, os danos deliberados ao meio ambiente e os atentados contra a saúde e a paz pública, as facções criminais, os agrupamentos milicianos e os delitos de colarinho branco.

Diante disso, é importante, sem dúvidas, incorporar o legado da crítica criminológica à gestão dos mecanismos de controle punitivo, ampliando os mecanismos de controle e participação popular (conselhos da comunidade, conselhos de segurança pública, ouvidorias), criando mecanismos mais eficazes de controle externo sobre a atividade policial e judicial, garantindo o amplo direito de defesa e a presunção de inocência até o trânsito em julgado das condenações criminais, dando transparência à atuação das polícias e da justiça, tanto pela produção, análise e divulgação de estatísticas criminais quanto pelo amplo acesso da imprensa e da comunidade científica a todos os âmbitos de atuação do controle punitivo, e implementando alternativas penais e investindo em mecanismos de mediação e conciliação.

Da mesma forma, é necessário reconhecer os limites do sistema penal para a redução da criminalidade. Políticas de prevenção ao crime multisetoriais, com investimento em educação para a juventude, em emprego e renda dignos, em melhorias do ambiente urbano, em formas de produção identitária que afirmem valores positivos, como a convivência pacífica (não armada) e solidária, são sem dúvida as formas mais eficientes para alcançar resultados a longo prazo na redução da violência.

Isso não invalida, no entanto, a importância dos mecanismos repressivos, para que condutas criminosas com grande potencial lesivo não fiquem impunes, como muitas vezes acontece, como têm demonstrado os relatórios anuais da pesquisa “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz. Aperfeiçoar as ferramentas para a alocação adequada do policiamento ostensivo, investir em inteligência policial voltada ao esclarecimento dos fatos que servirão de base para a responsabilização criminal, garantir um processo penal em que direitos e garantias sejam respeitados e ocorrências criminais sejam efetivamente esclarecidas, e que a execução da pena ocorra dentro da lei, em condições adequadas de encarceramento e atenção ao egresso do sistema prisional, são desafios cuja concretização é pressuposto da legitimidade social das polícias e da justiça penal.

É muito provável que as disputas políticas mais relevantes no Brasil e no mundo nas próximas décadas reproduzam os embates entre os defensores de mecanismos democráticos de organização e gestão da vida social, incluindo a segurança pública, com respeito à participação cidadã, à transparência e a toda uma base principiológica construída desde as grandes revoluções liberais e sociais dos últimos séculos, acrescida de valores mais recentemente consagrados, como a preservação ambiental, contra os defensores de ideais “tradicionalistas” de retorno a um passado idealizado de estratificações sociais legitimadas e privilégios sustentados pelas próprias instituições estatais. Frente a isso, nada mais atual do que a defesa do Estado democrático de direito no que ele tem de mais inovador: o reconhecimento formal da igualdade de todos perante a lei, quando se trata de estabelecer limites punitivos aos comportamentos em sociedade. Sendo assim, é preciso também reconhecer que não haverá democracia sem polícia e sem justiça penal. Trata-se de construir uma polícia e uma justiça penal para a democracia.

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