Múltiplas Vozes 07/12/2022

Desafios da formação policial profissional no novo governo

Um dos principais desafios do próximo governo é estabelecer um conjunto de políticas que possa operar mudanças efetivas e duradouras na ressignificação do papel das polícias, de forma que essas instituições possam reproduzir os valores democráticos

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Paula Poncioni

Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora da tese de doutorado “Tornar-se policial: a construção da identidade profissional do policial no estado do Rio de Janeiro" (2004)

O Brasil experimentou, nos últimos quatro anos, a intensificação de múltiplas violências presentes na sociedade brasileira contemporânea contra crianças, jovens, idosos, mulheres, integrantes da comunidade LGBTQIA+ e em diversos espaços como escolas, trabalho, campo, bem como na esfera das relações interétnicas e culturais, além de variadas violações de direitos humanos. Pôde-se observar ainda o incremento do crime violento em diferentes regiões do país, com destaque para a região Norte – compreendendo o narcotráfico, o tráfico de madeiras e o de minérios.

Nesse período, evidencia-se na área das relações interpessoais a propagação e aprofundamento do chamado de “autoritarismo socialmente implantado”.  No âmbito do Estado, com a política do governo federal, ainda em vigência, constata-se o estabelecimento de práticas autoritárias e violentas como alternativas de ação governamental para lidar com os conflitos na sociedade, acompanhadas do desmantelamento de diferentes tipos de políticas públicas implementadas nas diversas áreas, como saúde, educação, trabalho, lazer, cultura, segurança, meio ambiente, entre outras, com vistas a garantir direitos à população.

Uma das principais consequências observadas no campo da segurança pública é o elevado apoio de um número significativo de policiais ao discurso autoritário produzido por esse governo, como também a expressiva adesão às práticas que enfatizam o uso excessivo da força no trabalho policial para a resolução das questões afetas ao setor, em detrimento das modalidades de policiamento que se baseiam na prestação de serviços – com ênfase na prevenção -, o que tem provocado não só o aumento das taxas de letalidade policial, mas igualmente de vitimização policial.

A eleição de uma frente democrática para ocupar o governo federal, em novembro último, representa um dos “processos” ou “fluxos” que podem abrir uma “janela de oportunidade” para a estruturação de uma agenda governamental alinhada à ideia não apenas de uma concepção democrática de segurança pública, mas também à produção de propostas e alternativas que se conectem aos problemas verificados com vistas a sua efetiva resolução.

Nessa direção, o novo governo que será empossado em 1º de janeiro de 2023 terá como um dos principais desafios estabelecer um conjunto de políticas que possa operar mudanças efetivas e duradouras na ressignificação do papel das polícias para que as organizações policiais possam reproduzir os valores democráticos, assim como produzir nas práticas concretas alternativas pacíficas de obediência às leis, às normas e regras em sintonia com as garantias constitucionais e jurídicas propostas pelo Estado Democrático de Direito.

No cenário de reformas a serem realizadas, a educação policial pode se constituir uma ferramenta importante para a (re)construção de valores e normas (democráticas), de competências, habilidades e posturas do policial para o desempenho dos procedimentos de dissuasão do crime e de comportamentos criminosos, como também na realização de processos de regulação por intermédio dos quais a polícia toma decisões e exerce autoridade nas suas relações com os cidadãos no seu dia a dia.

Para isso, no plano das reformas educacionais, o governo federal pode (e deve) primeiramente recuperar seu protagonismo no estabelecimento e coordenação de um sistema de educação que busque promover e sedimentar parâmetros nacionais ajustados às exigências do policiamento na democracia – accountability, participação social, profissionalismo, compromisso com a legalidade e respeito aos direitos humanos, entre os mais importantes -, para fundamentar as orientações e práticas pedagógicas nos cursos de formação e aperfeiçoamento profissional das diferentes carreiras profissionais da área. Nesse sentido, algumas iniciativas são essenciais para (r)estabelecimento e consolidação de um  processo de formação profissional de policiais em uma perspectiva democrática de segurança pública: 1) incentivar as academias de polícia a utilizar nos cursos de formação e aprimoramento profissional uma abordagem teórico-metodológica que favoreça o diálogo, a interdisciplinaridade, a reflexão, o enfoque de temáticas como relações interpessoais e a diversidade étnico-cultural, em conjunto com assuntos associados aos conhecimentos tradicionalmente transmitidos para a realização do trabalho policial (é desejável a inserção de matérias que permitam a conscientização racial e valorização da diversidade, bem como o envolvimento dos grupos minorizados na formação profissional regular de todos os policiais); 2) estimular, com especial atenção, o treinamento do uso da força que deve ser realizado com armamento menos letal lado a lado ao do armamento letal, com estrita obediência às leis, às normas e regras no Estado Democrático de Direito (é esperado o suporte para o uso de procedimentos que reproduzam nas academias de polícia os cenários mais próximos das condições de trabalho no campo – estudos de caso, vídeos seguidos de debate, simulações etc.);  3) fomentar a constituição de um corpo docente qualificado e dedicado integralmente ao ensino e treinamento nas academias de polícia; 4) impulsionar o intercâmbio e cooperação entre as academias de polícia e as universidades e os centros de pesquisa, combinando os cursos realizados por ambos; 5) promover a educação continuada para todos os níveis hierárquicos de todas as carreiras policiais; 6) induzir os gestores das academias de polícia a realizar o monitoramento e a avaliação de desempenho dos cursos de formação e aperfeiçoamento profissional com vistas a examinar o que se quer manter, corrigir, reformular e inovar nos processos educativos.

Sem esgotar o assunto, essas são considerações que, no contexto de mobilização de esforços para (re)constituição de uma agenda factível de reformas no panorama da educação policial, permitem vislumbrar mudanças imprescindíveis orientadas a uma segurança pública democrática.

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