Retrospectiva 2021

Debate sobre a Lei Orgânica das Polícias Militares*

As PMs são a espinha dorsal da segurança pública, mas recebem tratamento de instituições de segunda categoria. Momento deveria ser usado para discutir regulação de aspectos intrínsecos da categoria e a relação com a sociedade

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

*Artigo originalmente publicado na edição número 75 do Fonte Segura, em 10 de fevereiro de 2021

Tem gerado grande polêmica o encaminhamento da Lei Orgânica das Polícias Militares. As Polícias Militares hoje são a espinha dorsal da segurança pública no Brasil, sendo responsáveis por mais de 80% de todas as apreensões de armas e pelas prisões em flagrante de toda a repressão a entorpecentes no Estado de São Paulo. Porém, aprecie-se ou não tal afirmação, por sua condição de “militar”, elas têm sido tratadas como “instituições de segunda classe”. Explicamos.

Diversos bons artigos têm sido produzidos por pesquisadores, analistas, professores e profissionais da área para discutir a lei orgânica das polícias. Cito aqui as duas matérias publicadas pela Folha de São Paulo, edição de 6 de fevereiro de 2021, no espaço Tendências e Debates. Dos três articulistas, dois são particulares amigos, respeitados profissionalmente e sérios intelectualmente. O Coronel José Vicente (que assina o primeiro texto conjuntamente com o ex-ministro Raul Jungmann) e o Coronel Elias Miler da Silva. José Vicente e Jungmann fizeram críticas ao projeto que está em tramitação no Congresso Nacional, propondo, de maneira não explícita, profunda modificação, enquanto Miler da Silva defendendo suas proposições e aprovação.

Fico, neste particular aspecto, com o Coronel José Vicente. E gostaria de abordar alguns aspectos ainda não esmiuçados. Em primeiro lugar, os militares, em quase toda a história da República, nem mencionemos o Império, sempre foram tratados como cidadãos de segunda classe. Inacreditavelmente, as praças (soldados, cabos e sargentos) só começaram a votar em 1988, com a Constituição da redemocratização. Não há um estatuto legal, à semelhança de outras Instituições como Polícias Civis e Forças Armadas, que regule a vida, direitos e deveres de seus integrantes. Quer dizer, os deveres estão amplamente previstos no Regulamento Disciplinar. No caso específico de São Paulo, os direitos e garantias são previstos em uma miríade de leis esparsas, o que demonstra o desprezo do Estado por uma categoria profissional, ao mesmo tempo em que se dificulta a extremo a localização exata de quais são seus direitos e suas garantias.

Em segundo lugar, não se pode, a par de todos os problemas existentes na segurança pública, piorar ainda mais o que merece e precisa ser aperfeiçoado. A eleição para Comandante-Geral é ideia estapafúrdia. Essa hipótese gerará divisões internas, perseguições e a criação de facções políticas em seu interior. As eleições, com ampla participação apenas dos integrantes da própria organização, geram corporativismo desmedido, ausência de controle popular e ânsia por retirar dos governos benefícios para a categoria profissional, de forma injusta.

Sob a alegação de que a participação de todos os integrantes da organização, ou pelo menos todos de determinada categoria profissional, torna o escrutínio mais justo, por que não toda a sociedade participar de sua escolha? Num país de baixo controle público do Estado, em que todos querem ser independentes, vide as universidades (que pecaram severamente pela falta de transparência, como se verificou não muito tempo atrás, no caso de salários acima do teto), as ouvidorias, as advocacias públicas, etc, o que se pretende é criar Estados dentro do Estado.

Como último aspecto, no Brasil fala-se em Lei Orgânica das Polícias. Na realidade, deveria-se tratar de Lei das Polícias. Pois é imperioso haver, como na Inglaterra, em Portugal e na Espanha, capítulos regulando não apenas aspectos intrínsecos e orgânicos das polícias, todas elas e suas correlações, mas também as relações com a sociedade em si. Quais os direitos dos cidadãos frente ao Estado, bem como, também, seus deveres. Cito como exemplo a abordagem, ingresso em domicílios, a conduta do indivíduo que será abordado, etc. Isto servirá como garantida de direitos para o cidadão, previsão de condutas e segurança de atividade para o policial.

Por fim, a lei aprofunda a crise de identidade das Polícias Militares. São “polícias” ou são “militares”? Essa “disfunção” as acompanha desde o fim da Primeira República. E não será nesse governo que teremos avanços.

Tenho plena convicção que Bolsonaro fez apenas um balão de ensaio para verificar a aceitação e o recebimento de tais ideias pela sociedade e pela comunidade política como um todo. Ciente de suas limitações frente às Forças Armadas, que deram claros sinais de respeito pela democracia, a transformação das Polícias Militares em uma única “gendarmerie”, uma quarta força armada, a exemplo do Chile, Itália e França, poderia ser uma alternativa de suporte militar para suas bravatas e anseios. Não se espere nada de democrático desse governo. Que as forças políticas democráticas, à esquerda e à direita, se oponham a desideratos autoritários e estapafúrdios. A antipatia a determinados governos estaduais não justifica a mudança de arquitetura constitucional no campo da segurança pública. Governos passam. Instituições permanecem.

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