Crimes digitais em alta, crimes violentos em queda – um retrato da migração criminal no Estado de São Paulo
Pesquisa elaborada junto ao departamento de Sistemas da Informação da EACH-USP se propôs a demonstrar a migração dos crimes de rua para os digitais em São Paulo, entre 2019 e 2022
Kerlly Santos
Policial Civil/SP, pesquisadora e membra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Em artigo publicado no Fonte Segura em 2023, Túlio Khan tratou da migração criminal dos crimes de rua para os digitais no Brasil. Essa tendência nacional teve início com a chegada da era digital, que trouxe consigo maior velocidade nas comunicações, mas também abriu espaço para novas modalidades de crimes, até porque a tecnologia impacta diretamente as relações sociais, e isto não seria diferente em relação ao crime.
A transformação no cenário criminal demanda não apenas novas formas de atuação operacional da segurança pública, mas também novas maneiras de compreender o comportamento criminoso com vistas a antecipar tendências e poder atuar de forma mais eficiente. É nesse contexto que está inserida a análise criminal, campo que se beneficia e muito de métodos estatísticos e ferramentas interdisciplinares.
Como afirmam Weisburd e Britt (2014, p. 2), “o propósito da análise estatística é esclarecer e não confundir”. A aplicação da estatística na segurança pública não se resume à contagem de ocorrências, mas permite revelar padrões, tendências e zonas críticas de atuação criminal – que são elementos-chave para o desenvolvimento de políticas públicas orientadas por dados e para tomada de decisões estratégicas. A aplicação estatística é inclusive estimulada pela ONU, que fornece um Manual para o Desenvolvimento de um Sistema de Estatísticas de Justiça Criminal. Por esse motivo, quando analisada essa nova realidade digital, torna-se fundamental recorrer a tais métodos.
Pensando nisto, foi elaborada pesquisa junto ao departamento de Sistemas da Informação da EACH-USP, sob orientação do professor doutor Luciano Antonio Digiampietri, em que um dos objetivos era compreender como os números demonstravam essa migração criminal especificamente no estado de São Paulo no período entre 2019 e 2022. Os dados trabalhados foram obtidos através do Serviço de Informações ao Cidadão, da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, e de coleta nos canais abertos do mesmo órgão. O enfoque principal foi sobre crimes de estelionato, por terem grande relevância atualmente, fazendo com que o Brasil figure em segundo lugar no que diz respeito a risco de fraudes.
Alteração legislativa promovida em 2021 elevou a pena por fraude eletrônica, que era de 1 a 5 anos e passou a ser de 4 a 8 anos. A despeito dessa mudança, tal modalidade ainda é de difícil esclarecimento, e se configura como uma atividade de alta lucratividade para os criminosos. Há diversas ferramentas disponíveis para anonimização online, o que dificulta a atuação estatal. Como é de se esperar, o crime acompanha a modernidade e migra conforme a necessidade, e, atualmente, aproveita de uma população tecnologicamente incluída, mas com letramento digital inexistente ou muito vago.
É possível inferir que a pandemia de COVID-19 tenha acelerado significativamente essa migração criminal, uma vez que as medidas de isolamento social e o lockdown ampliaram a dependência da população em relação a meios eletrônicos para comunicação e realização de transações. Com isso, o campo era fértil para o surgimento de novas modalidades de golpes, como o do auxílio emergencial vigente durante a pandemia.
Na pesquisa, foram trabalhados os dados de cerca de 600 mil casos de estelionatos cometidos por meios eletrônicos. Para fins desse estudo, foram englobados como “meios eletrônicos” ligações, aplicativos de mensageria, sites, plataformas digitais e quaisquer outras tecnologias que venham a ser empregadas na prática do estelionato. Para fins comparativos, foram contabilizados também os chamados crimes graves e de alto impacto social – e, para fins de referência, aqui estão incluídos os homicídios dolosos, roubos, latrocínios, estupros e extorsões mediante sequestro.
Os dados revelam uma mudança expressiva na dinâmica criminal do estado de São Paulo. O total de crimes registrados (contabilizando todas as naturezas) no ano de 2019 era de 1.782.352, e em 2022 tivemos o total de 2.282.516, o que representa um aumento de 28%. De 2019 a 2020 foi observada leve queda, mas, a partir de 2020, os registros voltaram a crescer continuamente até 2022.
Já em relação aos crimes digitais, o que se vê é um aumento de mais de 661% quando comparamos 2022 ao ano de 2019 – e vale ressaltar que a maior parte deles é constituída por estelionatos. O pico dos dados analisados foi o ano de 2021, no qual foram registrados 216.508 casos, contra 24.891 crimes cometidos por meios eletrônicos em 2019. Os estelionatos cometidos por meios digitais tiveram um aumento de 1162% quando comparado o mesmo período em 2019 e em 2022, mas o número mais alarmante foi do comparativo de janeiro de 2019 (377 casos) contra os de dezembro de 2022 (11.311), em que se vê que o total mensal aumentou mais de 2900%.
Durante o mesmo período, os crimes graves sofreram uma diminuição de 5% quando comparados os dados de 2019 e 2022, mas o ano de 2020 representou uma diminuição ainda maior, com uma redução de aproximadamente 17% em relação ao ano anterior.
Vale lembrar que estes números foram obtidos a partir dos dados oficiais, mas que se sabe da existência de uma cifra oculta em relação aos crimes de estelionato pois muitas vezes as vítimas deixam de buscar auxílio dos órgãos oficiais por vergonha de terem sido enganadas.
Partindo dos dados obtidos e das análises realizadas, é possível perceber que houve um aumento dos crimes em geral, mas uma redução dos crimes graves e aumento preocupante dos crimes cometidos pelos meios digitais.
Assim, pode-se afirmar que estes dados corroboram as afirmações de uma migração criminal nacional, oferecendo também uma compreensão detalhada do quadro criminal do estado de São Paulo. Os resultados, por sua vez, apontam para a necessidade urgente de adaptação das políticas públicas de segurança e das estratégias investigativas às novas dinâmicas criminosas no ambiente digital.