Silvia Ramos
Cientista social e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
Thallita Lima
Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio e coordenadora de pesquisas do Panóptico, do CESeC
Jonas Pacheco
Mestre em Ciências Sociais pela UERJ e coordenador de pesquisas da Rede de Observatórios da Segurança, do CESeC
Há anos o CESeC monitora as estatísticas mensais oficiais do estado do Rio de Janeiro. No ano passado, resolvemos tornar públicas as análises que fazemos internamente. O ano de 2024 apresentou novidades em relação às características estruturais da criminalidade fluminense combinadas com aspectos preocupantes de caráter aparentemente conjuntural. Abaixo destacamos três pontos principais, cujas análises completas encontram-se em Crime no Rio 07.
Letalidade em queda, mas grupos armados em alta
Um dos destaques de 2024 foi a queda geral dos fenômenos relacionados à letalidade violenta no Rio de Janeiro. Tanto os homicídios como as mortes decorrentes de ação policial caíram. Os homicídios ficaram abaixo de 3 mil, o menor número em 34 anos; as mortes por ação policial ficaram abaixo de 700, o menor registro desde 2015.
A redução dos homicídios vem ocorrendo nos últimos anos em vários estados do Brasil. Homicídios ocorrem concentradamente em decorrência de conflitos entre indivíduos envolvidos direta ou indiretamente no mundo do crime. Portanto, é legítimo supor que alterações desse fenômeno (tanto reduções como aumentos) sejam decorrentes principalmente de novos arranjos internos de gangues, quadrilhas e facções armadas.
Ou seja, a queda dos homicídios não tem a ver com políticas de redução da letalidade (investimentos em prevenção, atenção a comunidades ou desarticulação de grupos armados), o que no estado definitivamente não houve.
No caso das mortes decorrentes de ação policial – diferentemente dos homicídios – os números são resultado imediato e direto de políticas de segurança adotadas pelos governos estaduais. No gráfico abaixo vemos que as polícias na rua respondem rapidamente aos políticos nos palácios.

O que houve no Rio foi a mudança súbita de orientação durante o governo de Claudio Castro, em agosto de 2023, depois da morte do menino Thiago Flausino, de 13 anos, na Cidade de Deus, resultante de pressões combinadas do Supremo Tribunal Federal e do governo federal, incluindo a negociação da dívida do estado. A redução já vinha ocorrendo em função da ADPF das Favelas e sua sustentação em 2024 possivelmente foi influenciada também pela expansão do uso de câmeras corporais inclusive nos batalhões chamados “operacionais” (Bope, Choque etc.), conforme determinado pelo STF.
O paradoxo no fenômeno de redução geral da letalidade no RJ é que as mortes violentas diminuíram, mas isso não significa que a violência tenha se reduzido. O poderio dos grupos armados no estado só fez aumentar, acentuando uma tendência que vem de mais de uma década. A redução recorde da letalidade no estado não resultou até aqui em alívio de violência para os moradores das vastas regiões dominadas por grupos armados. Facções do tráfico e grupos de milícias vêm mantendo e inclusive expandindo seus domínios, segundo monitoramentos de organizações como Fogo Cruzado, Geni/UFF e Rede de Observatórios da Segurança e matérias jornalísticas diárias.
Tudo indica que os métodos que o governo do estado vem adotando há décadas – muito confronto, operação e tiroteio e pouca inteligência – representem uma estratégia errada de enfrentar o problema. Isso significa que a redução dos índices de letalidade violenta não corresponde a um aumento da segurança para as populações das favelas e periferias, inclusive do interior fluminense.
Crimes contra o patrimônio em alta
Em 2024 assistimos ao súbito crescimento de crimes patrimoniais, com aumento de 39% de roubos de veículos e 17% de roubos de rua.
As respostas tardias do governo estadual se concentraram em operações de repressão em operações de rua. Mas roubos se relacionam a cadeias articuladas desde a subtração do bem, passando por intermediários, até sua comercialização ou venda na ponta final. Ações repressivas nas ruas são pouco eficazes para desarticular esses esquemas.
O elo forte dessas cadeias são empresários do crime que mobilizam enormes somas de dinheiro, o que exige trabalho de inteligência e desarticulação de esquemas complexos.
Um ponto de destaque no Rio de Janeiro é que o aumento de todas as modalidades clássicas de crime patrimonial (na rua, em coletivos, de veículos e cargas) vem convivendo com o aumento de crimes virtuais (houve 144.117 estelionatos, o que significa crescimento de 19,9% em relação ao ano anterior).
O Rio de Janeiro é um ponto fora da curva, considerando que, em vários estados, os crimes virtuais estão substituindo as modalidades tradicionais. No RJ, tudo cresceu em 2024. Esses crimes impactam fortemente a sensação de segurança da população. Roubos de celular, motos, carros ou relógios atingem milhares. Além disso, é brutal a diferença de incidência desses crimes quando se comparam as áreas abastadas às pobres da cidade. Um exemplo: foram registrados roubos de 3.247 na Pavuna e 19 em Copacabana.
As populações mais pobres são as mais afetadas pelos roubos e furtos. Os crimes patrimoniais descontrolados, como observamos no Rio de Janeiro em 2024, são o combustível mais explosivo para alimentar sentimentos de revolta, vingança e apoio a políticas de endurecimento policial e penal.
Letalidade diminui e desaparecidos aumentam
O registro de desaparecimentos atingiu um patamar inédito em 2024, ultrapassando os 6 mil; é o maior registro desde 2015. A categoria geral “desaparecidos” abarca desde homicídio com ocultação de cadáver, rapto, sequestro, tráfico humano, até idosos com Alzheimer, portadores de doenças mentais, crianças que se perdem nas ruas, adultos deliberadamente desaparecidos ou ainda fuga de crianças e adolescentes devido a conflitos familiares. É um fenômeno multifatorial que requer estudos, identificação de dinâmicas e políticas públicas igualmente especializadas.
O aumento inexplicável dos desaparecimentos sem que o governo apresente uma única ponderação sobre a existência ou não de correlação com a redução da letalidade violenta é chocante. O governo do estado deve um estudo sobre o que está atrás desses números tão altos: categorias, perfil das vítimas (sexo, idade, local de moradia, tempo de desaparecimento etc.) e correlação entre registros de desaparecidos e pessoas encontradas. O ISP deve um dossiê ao Rio e ao Brasil.