Controle do uso da força pelas polícias, uma pedra no sapato do Estado brasileiro
Apesar da recorrente resistência de gestores e políticos, a sociedade civil, movimentos negros, organizações de direitos humanos e a academia têm desempenhado um papel fundamental ao levantar questões relacionadas ao controle do uso da força e à letalidade policial
Ariadne Natal
Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado no Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)
O controle do uso da força pelas polícias brasileiras representa um desafio persistente para o Estado brasileiro. Os altos índices de letalidade policial, especialmente entre populações negras, jovens e economicamente desfavorecidas, a ausência de investigação e elucidação desses episódios e a atuação tímida dos Ministérios Públicos estaduais são amplamente conhecidos. Não obstante, apesar da ampla visibilidade dessas questões, a adoção de políticas públicas coerentes para enfrentá-las permanece incipiente e muitas vezes evitada devido à complexidade política e ideológica que a envolve.
As estratégias de controle da força policial são frequentemente interpretadas como ataques à autoridade policial e à sua capacidade de manter a ordem, o que também levanta questões sobre a subordinação das forças militares ao poder civil. Em meio a essa tensão têm prevalecido soluções predominantemente reativas, com ênfase na abordagem militarista e no uso excessivo da força como principal instrumento de políticas de segurança pública.
Mesmo em contextos políticos mais progressistas, nos quais em tese haveria mais abertura para soluções baseadas na prevenção e controle, poucos planos e políticas foram desenvolvidos de forma deliberada para reduzir o uso da força policial. Em nível estadual, raramente são implementadas iniciativas que abordam diretamente esse problema, muitas vezes disfarçando a contenção da força sob projetos mais amplos (em meio a planos gerais de redução de homicídios), ou mesmo tratando-a como um efeito colateral de outras políticas (como no caso da incorporação de câmeras corporais aos uniformas policiais). Raramente a necessidade e a intenção de realizar o efetivo controle do uso da força pelas polícias são enunciados de maneira clara e objetiva por gestores e políticos.
Na esfera federal, dado nosso arranjo constitucional federalista, existem evidentes desafios institucionais para um protagonismo da União na articulação de políticas de controle sobre o uso da força policial. No entanto, para além do desenho institucional, o obstáculo muitas vezes reside na relutância em lidar diretamente com o assunto no desenvolvimento de políticas públicas. A despeito de algumas vitórias, como a aprovação de medidas legais significativas, entre elas a Portaria Interministerial 4226 (2010) e a Lei 13.060 (2014), essas iniciativas carecem de políticas e programas que visem efetivamente controlar o uso da força policial na ponta.
Os primeiros planos e programas nacionais de segurança pública não propuseram metas de monitoramento, controle e redução do uso da força letal pelas polícias. O tema foi abordado no Plano Nacional de Segurança aprovado no apagar das luzes de 2018, sob o arco da redução das mortes violentas, mas o tema foi retirado na versão mais atual em vigor, o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2021-2030), o que motivou inclusive uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 7013) no STF que determinou a reinserção de objetivos, metas, programas e indicadores para acompanhamento de mortes decorrentes da intervenção de agentes de segurança pública.
Apesar da recorrente resistência de gestores e políticos, a sociedade civil, movimentos negros, organizações de direitos humanos e a academia têm desempenhado um papel fundamental ao levantar questões relacionadas ao controle do uso da força e à letalidade policial. Isso ocorre não apenas por meio de centenas de denúncias de casos de abusos, mas também por meio de ferramentas sofisticadas de monitoramento e pressão política, como a ADPF 635 (ou ADPF das Favelas), que resultou na determinação do STF para que o Rio de Janeiro elabore um plano de redução da letalidade policial.
No contexto recente, diante de recorrentes casos alarmantes de uso excessivo da força pela polícia, o tema voltou a ser foco de debate em nível nacional, com holofotes e pressão sob o governo federal na expectativa de um delineamento de políticas direcionadas e eficazes para tratar do tema. As iniciativas mais vocais são aquelas que possuem laços com a sociedade civil, como as recomendações do Conanda, órgão colegiado ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, que propõe a criação de um programa nacional de combate à letalidade policial e a caravana “Juventude Negra Viva” que passou por diversos estados consultando a sociedade na elaboração de um plano que também trata de abusos policiais. Além disso, o Ministério da Justiça tem adotado medidas para induzir políticas relacionadas à letalidade em estados, como a revisão dos critérios de repasse do Fundo Nacional de Segurança Pública que condiciona o uso dos recursos à aplicação de programa de redução de mortes violentas, e também a articulação de um Projeto Nacional que padroniza as diretrizes para o uso de câmeras corporais por policiais, com a perspectiva de bonificar as unidades federativas que aderirem aos equipamentos e seguirem as diretrizes propostas.
No entanto, o tema ainda não conquistou um lugar de destaque nas principais políticas de segurança pública do governo, visto que não figura como um dos eixos prioritários do novo Pronasci, não foi abordado no Programa de Ação na Segurança e tampouco é mencionado no Programa de Enfrentamento a Organizações Criminosas. Nesse sentido, ainda que as iniciativas já iniciadas sejam importantes e salutares, é imperativo que o governo federal assuma um compromisso sólido e claro com essa questão, e ainda, que haja coordenação e que os esforços dos diferentes atores estatais estejam em consonância, evitando que a fragmentação mine os esforços e enfraqueçam os resultados que são fundamentais para a sociedade brasileira.