Atlas da Violência 26/06/2024

Conjuntura da violência no Brasil

Ao contrário do propalado, não houve qualquer sinal de melhoria na conjuntura da segurança pública no período Bolsonaro. A tendência de queda das Mortes Violentas Intencionais se exauriu, no rastro de uma legislação armamentista negacionista

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Conforme apresentado no Gráfico 1.1, após relativa estabilidade na taxa de homicídios registrados no Brasil entre 2012 e 2015, observou-se crescimento nos índices de letalidade nos anos de 2016 e 2017, seguido por forte redução até 2019, momento em que as taxas se mantêm, permanecendo estáveis até 2022.

Muito debate tem sido travado em torno da compreensão acerca da evolução dos homicídios nesse período. Em outras edições do Atlas da Violência argumentamos a favor de fatores estruturais e conjunturais que ajudariam a explicar o fenômeno.

Um elemento que certamente tem pressionado para cima as taxas de homicídio diz respeito à expansão das facções criminais, sobretudo a partir da década de 2000, envolvidas em escaramuças pelo controle do varejo de drogas nas maiores cidades, e depois nas médias e pequenas cidades, num processo de interiorização, conforme apontado por Cerqueira et al. (2013). A partir da década de 2010, a disputa mais aguerrida por territórios e pelo controle do corredor internacional de narcotráfico, no Norte e Nordeste, entre as duas maiores facções do país e seus aliados regionais fez estourar uma guerra intensa nos anos de 2016 e 2017. Nesse período, o número de mortes aumentou sobretudo nos municípios que cortam a região do Alto do Juruá, no Acre, e avança por toda a rota do Solimões, chegando até as capitais nordestinas, quando a cocaína procedente da Bolívia e Peru é exportada para outros continentes, conforme discutido no Atlas da Violência 2019.

No sentido contrário, atuando a favor da diminuição dos homicídios, o país passou pela maior transição demográfica da sua história, a partir do começo dos anos 2000, rumo ao envelhecimento da população. Cerqueira e Moura (2014) mostraram o potencial da queda de homicídios no rastro da diminuição da proporção de jovens na população. Segundo esses autores, o fator demográfico teria o potencial de reduzir a taxa de homicídios de 27,2 para 20 a cada cem mil habitantes entre 2010 e 2020. Importante salientar que, como o processo de envelhecimento populacional entre as Unidades Federativas (UF) se deu de forma heterogênea – com as UFs do Sudeste avançando mais rapidamente pela transição demográfica e as do Norte e Nordeste de forma mais lenta –, os seus efeitos sobre as taxas de homicídios ocorrem também de forma desigual entre os estados brasileiros.

Como segundo fator a atuar pela queda de homicídios, cita-se o maior controle de armas de fogo a partir de 2003, com a sanção do Estatuto do Desarmamento (ED). Cerqueira e De Mello (2013) estimaram que o ED pode ter salvado até 14.000 vidas entre 2004 e 2007, o que equivale a cerca de 7,4% dos homicídios no período. Uma ilustração de como o ED contribuiu para frear a escalada da violência armada no Brasil, a partir de 2003, foi apresentada também no Atlas da Violência 2019 (p.83).

Um terceiro elemento que conspirou a favor da redução de homicídios refere-se a um conjunto de políticas de segurança pública qualificadoras em algumas UFs e municípios, que foram pautadas pelas evidências do que funciona e orientadas por resultados. Esse fenômeno foi o que Cerqueira (2022) chamou de “revolução invisível”, cujas ações não tomaram as manchetes dos jornais, com operações teatrais e midiáticas, mas geraram maior efetividade, com base na boa gestão, aprimoramento do trabalho de inteligência policial e programas multissetoriais para prevenir a violência, de modo que o jovem mais vulnerável ao crime organizado e desorganizado pudesse ter alternativas de trajetória de vida, conforme apontamos na edição já citada.

O resultado dessas dinâmicas ajudou a mudar o contexto da violência letal no Brasil, apresentado no Gráfico 1.2. Se entre 1980 e início dos anos 2000 todas as cinco regiões brasileiras apresentaram trajetórias crescentes das taxas de homicídios, a partir de 2003 há uma reversão na Região Sudeste, em que os índices começaram a diminuir, liderados pelo estado de São Paulo. O Sul começa a apresentar uma tendência de baixa nas taxas a partir de 2009, ainda que tenha havido uma reversão entre 2014 e 2016, voltando a diminuir posteriormente. A partir de 2012 foi a vez de a Região Centro-Oeste apresentar forte e sistemática redução nas taxas de homicídios. Ou seja, o Gráfico 1.2 mostra um processo de reversão da tendência de alta dos homicídios em todas as regiões nas duas décadas anteriores, que se inicia em 2003 no Sudeste e alcança paulatinamente as demais regiões: o Centro-Oeste em 2012; o Sul em 2016 e, por fim, o Norte e o Nordeste em 2017, após o armistício na guerra do narcotráfico nessas regiões do país, entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) e aliados locais.

Interessante notar que essa dinâmica a favor da redução dos homicídios perde força em 2019. De fato, entre 2019 e 2022, a variação da taxa de homicídio no país foi nula, tendo voltado a aumentar no Nordeste (6,1%) e no Sul (1,2%) e diminuído nas demais regiões, com destaque para a forte redução da letalidade no Centro-Oeste (-14,1%), que manteve o ritmo de queda que ocorria desde 2016.

Uma possível explicação para essa estagnação no processo de redução da violência letal no Brasil a partir de 2020 diz respeito à legislação armamentista do governo Bolsonaro, que pode ter influenciado no sentido de aumentar os homicídios, anulando a maré a favor da redução de mortes, conforme exposto nos parágrafos anteriores. De fato, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023a), com base em metodologia econométrica robusta, mostrou evidências que, se não houvesse tal legislação, a redução dos homicídios teria sido ainda maior do que a observada entre 2019 e 2021, sendo que pelo menos 6.379 vidas teriam sido poupadas. Os autores estimaram que o aumento de 1,0% na difusão de armas de fogo gera aumento nas taxas de homicídios e de latrocínios de 1,2%.

O fato é que – a menos da redução de homicídios em 2019 que ocorreu como parte de uma tendência que vinha dos anos anteriores – ao contrário do propalado, não houve qualquer sinal de melhoria na conjuntura da segurança pública no Brasil no período Bolsonaro. A tendência de queda das Mortes Violentas Intencionais se exauriu, no rastro de uma legislação armamentista negacionista. Não houve qualquer avanço institucional para a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). E, ainda, sob a influência de incentivos simbólicos, de discursos e ações de muitas autoridades, velhos desafios voltaram à tona, como a questão da letalidade policial, como nos mostra o exemplo da Operação Verão na Baixada Santista no presente ano, que deixou 77 pessoas mortas pela Polícia Militar e reverteu a tendência de queda dessas mortes no estado de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERQUEIRA, D. et al. A singular dinâmica territorial dos homicídios no Brasil nos anos 2000. In: BOUERI, R.; COSTA, M. A. (Ed.). Brasil em Desenvolvimento 2013 – Estado, Planejamento e Políticas Públicas. Volume 3. Brasília: Ipea, 2013. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_brasil_desenvolvimento2013_vol03.pdf.
CERQUEIRA, D. A Revolução Invisível. In: MARIANO, B; WARDE, W. (Org.). Por uma Segurança Pública Democrática, Cidadã e Antirracista. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.
CERQUEIRA, D.; DE MELLO, J. M. Evaluating a National Anti-Firearm Law and Estimating the Causal Effect of Guns on Crime. Texto para Discussão nº 607. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/312210272_Evaluating_a_National_Anti-Firearm_Law_and_Estimating_the_Causal_Effect_of_Guns_on_Crime. Acesso em: 05 abr. 2024.
CERQUEIRA, D.; MOURA, R. Demografia e Homicídios no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. 658 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_regime_demografIco.pdf. Acesso em: 05 abr. 2024.
FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Armas de fogo e homicídios no Brasil. São Paulo: FBSP, 2023a. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/09/informe-armas-fogo-homicidios-no-brasil.pdf. Acesso em: 05 abr. 2024.

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