Confrontos armados no Rio de Janeiro
O cruzamento dos indicadores de intensidade e de regularidade dos confrontos armados na cidade permite a identificação de áreas críticas (clusters) a partir da atenção a características que impactam o cotidiano dos moradores, trabalhadores e transeuntes das áreas mais afetadas
Daniel Hirata
Professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense
Maria Isabel Couto
Diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado
O relatório “Grande Rio sob Disputa: mapeamento dos confrontos por territórios[1]” é resultado da colaboração entre o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) e o Instituto Fogo Cruzado, no âmbito do projeto “Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”. Desde 2019, nossos esforços são voltados para a compreensão dos impactos do conflito armado no estado do Rio de Janeiro. Ao longo deste período, foi percebida a necessidade de sistematizar, objetivamente, não apenas o controle territorial armado, mas também os confrontos associados a essa dinâmica.
Com qual frequência, abrangência, intensidade e regularidade ocorrem esses confrontos? Onde ocorrem? Quem são seus autores? Essas são algumas das perguntas que este relatório pretende responder. Utilizamos o cruzamento de uma série de dados para criar uma malha de detecção dos confrontos entre os anos de 2017 e 2022: Disque-Denúncia (DD), Instituto Fogo Cruzado (FC), Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ). Desta forma detectamos confrontos armados[2], com tiroteios e, por vezes, mortos e feridos, que podem estar associados às variações da extensão do controle territorial armado, às mudanças dos grupos armados que controlam determinado território e à atuação das forças policiais.
O primeiro elemento a ser analisado é a sua frequência: no período estudado foram mapeados 38.271 episódios de confronto na região metropolitana do Rio de Janeiro: média de 17 casos por dia. O ano mais conflitivo foi 2018, com 9.354 confrontos. O menos conflitivo foi 2022, com 4.502 confrontos.
Chama a atenção que, apesar da frequência altíssima de confrontos, a sua distribuição é bastante desigual. Em mais da metade dos bairros/ano analisados[3] (54,3%) não houve registro de confrontos. Quando observados ainda apenas os bairros, independente do ano, percebemos que, por um lado, em 34,9% (428 de 1.225) deles não houve nenhum confronto identificado e, por outro, em 28% (343 de 1.225) houve confronto registrado todos os anos. Esse tipo de análise é essencial para priorizar áreas de atuação e alocar recursos de segurança pública e prevenção à violência onde, de fato, são mais necessários.
Gráfico 1: Bairros afetados por confrontos na região metropolitana do Rio entre 2017 e 2022
2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | TOTAL BAIRROS ÚNICOS | TOTAL BAIRROS/ANO | |
Número de bairros | 1.225 | 1.225 | 1.225 | 1.225 | 1.225 | 1.225 | 1.225 | 7.350 |
Número de bairros com conflitos registrados | 544 | 623 | 587 | 549 | 545 | 508 | 797 | 3.356 |
Porcentagem de bairros com conflitos registrados | 44,4% | 50,9% | 47,9% | 44,8% | 44,5% | 41,5% | 65,1% | 45,7% |
Fonte: Malha de detecção de confrontos do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro — baseada em dados do DD, FC, GENI/UFF e ISP-RJ.
Outro aspecto importante é a intensidade dos conflitos e suas consequências diretas. Para tanto, construímos um indicador de intensidade de confrontos com base na combinação de nove variáveis que captam não somente os episódios de confronto (denúncia de confronto ao DD, tiroteio no FC, operação no GENI/UFF e MIAE no ISP-RJ), como também os seus efeitos (homicídio doloso no ISP-RJ, mortos e feridos no FC e GENI/UFF)[4]. Como já dito anteriormente, 54,3% dos bairros/ano não registraram confrontos. O segundo grupo de maior destaque são os bairros/ano com baixa intensidade de conflitos (36,0%), seguidos daqueles de média intensidade (4,3%) ou alta intensidade (3,0%) e, finalmente, os com altíssima intensidade de conflitos (2,3%).
É de interesse também determinar a regularidade dos confrontos, ou seja, a maior ou menor concentração destes, não apenas no sentido territorial, mas também em relação a sua distribuição ao longo de um mesmo ano, que é a unidade temporal de análise da pesquisa. Nesse intuito, realizamos um cálculo do coeficiente de Gini para identificar quais áreas estão sendo submetidas regularmente a disputas entre grupos armados de forma crônica, e em quais delas os confrontos são caracterizados por situações pontuais ou agudas. Novamente, é importante lembrar que na maioria dos bairros/ano (54,3%) não houve registro de confrontos. Em seguida, destacam-se os elementos com baixa regularidade (ou alta concentração temporal) de conflitos (32,8%). Apenas 7,7% dos bairros/ano apresentaram regularidade mediana de conflitos e uma parcela ainda menor, 5,1%, apresentou alta regularidade dos mesmos.
A malha de detecção de confrontos permite, portanto, observar com mais clareza o padrão dos confrontos na região metropolitana do Rio de Janeiro. É possível observar o que cifras inaceitáveis por vezes tornam nebuloso: há padrões claros que podem auxiliar a guiar políticas públicas mais eficientes. O cruzamento dos indicadores de intensidade e de regularidade dos confrontos armados possibilita a identificação de áreas críticas (clusters) a partir da atenção a características que impactam, cada qual à sua maneira, o cotidiano dos moradores, trabalhadores e transeuntes das áreas mais afetadas.
Gráfico 2: Distribuição de bairros/ano da região metropolitana do Rio de 2017 a 2022, de acordo com associação entre intensidade e regularidade dos confrontos
CLUSTER | BAIRROS/ANO | % |
Sem confronto | 3.994 | 54,3% |
Irregularidade e baixa intensidade ao longo do ano | 3.081 | 41,9% |
Regularidade e alta intensidade ao longo do ano | 275 | 3,7% |
Total | 7.350 | 100.0% |
Fonte: Malha de detecção de confrontos do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro – baseada em dados do DD, FC, GENI/UFF e ISP-RJ.
De um lado, percebem-se uma maior frequência e impactos violentos dos confrontos que submetem uma pequena parcela da população — que vive e circula em 3,7% dos bairros/ano analisados — a um risco cotidiano, iminente, real e avassalador da violência armada. De outro, o caráter irregular, porém não desprezível, e razoavelmente disseminado — afetando 41,9% dos bairros/ano analisados —, de uma violência nem sempre esperada, que atravessa o dia a dia das pessoas, espalhando a sensação de medo e insegurança. Em todos os casos, observam-se padrões diferentes de conflitos armados que promovem rupturas no cotidiano da população, deteriorando sua qualidade de vida. No conjunto, essas duas características apontam para o mesmo problema central: as perversas dinâmicas do controle territorial armado e das operações policiais. Mas as respostas a esse problema precisam se alinhar às especificidades com que eles se materializam na prática.
Os dados desta pesquisa apontam para um resultado importante. Os níveis de confronto na região metropolitana do Rio de Janeiro são inaceitáveis e incompatíveis com um Estado Democrático de Direito no qual deveria prevalecer o monopólio do uso da força pelo Estado e a garantia constitucional do direito à vida e à segurança da sua população. Mas esse assustador diagnóstico não deve resultar em apatia e falta de ação por parte do poder público e da sociedade. Isso porque é possível identificar padrões dessa violência que, se usados como insumos para políticas públicas de segurança baseadas em evidências, podem servir como chave para, de uma vez por todas, caminhar-se na direção de uma sociedade mais justa e pacífica.