Múltiplas Vozes 26/04/2023

“Combater o crime” ou mediar conflitos? O problema da autolegitimidade entre policiais*

Há uma tensão entre a ex­pectativa de um trabalho baseado no heroísmo, na adrenalina e no “combate ao crime” e a realidade de um trabalho voltado à solução de conflitos interpessoais

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Giane Silvestre

Pesquisadora do NEV-USP e associada ao FBSP

O que os policiais entendem como “função” da polícia? Qual a avaliação que fazem do seu trabalho e de sua relação com a sociedade? Sentem-se confiantes da autoridade que possuem? Buscando responder algumas destas perguntas e dialogando com os estudos sobre a legitimidade das instituições, conduzi, em parceria com Bruna Gisi, uma pesquisa que buscou explorar a construção da autolegitimidade entre policiais paulistanos. O estudo qualitativo ouviu 28 praças da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), que trabalhavam com o patrulhamento ostensivo. A maioria formada por homens e jovens[1]. Nas entrevistas, exploramos a percepção dos PMs a partir de suas concepções de autoridade (fundamental para a construção da autolegitimidade) e do contato com a população.

Ao relatar seu cotidiano de trabalho e as dificuldades enfrentadas no trato com a população, os policiais constroem um problema que é fundamentalmente de legitimidade. Quando exercem a atividade coercitiva autorizada por seu mandato (no caso de abordagens, por exemplo), os policiais sentem que sua autoridade é constantemente questionada e desres­peitada. Em contrapartida, as ocorrências resultantes das demandas da população (predominantemente relacionadas a conflitos interpessoais), que poderiam ser percebidas por eles como reconhecimento de sua autoridade, são vistas como desvios em relação a suas atribuições.

Esta pesquisa faz parte de uma série de estudos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), que tem se dedicado a compreender a questão da legitimidade das instituições consideradas essenciais para a democracia brasileira, especialmente as polícias civil e militar. Alguns desses estudos se voltam sobre a legitimidade atribuída às polícias pela população, enquanto outros buscam compreender como essa noção é construída pelos próprios agentes, como o estudo que embasa este texto.

A discussão teórica internacional em torno do conceito de legitimidade é baseada nos estudos de Tom Tyler (1990; 2003), que defende a importância da qualidade dos contatos cotidianos entre a população e os policiais. Pare ele, a legitimidade das instituições públicas é obtida como resultado das interações entre os cidadãos e os servidores públicos (incluindo os policiais), construída através de um tratamento justo, igualitário e transparente, baseado em uma comunicação acessível e respeitosa, despendida pelos agentes do Estado.

Aprofundando esta discussão, Anthony Bottoms e Justice Tankebe (2012) afirmam que a legitimidade dos detentores de poder seria uma precondição para que o público reconheça a legitimidade da instituição. Com isso, criam a noção de autolegitimidade que, segundo eles pode ser definida como o nível de confiança que um funcionário público dispõe sobre sua própria legitimidade, considerando-se apto para assumir sua autoridade. Portanto, para entender a autolegitimidade, é importante avaliar alguns elementos como: o que o policial entende como seu trabalho; o quanto se sente confiante para exercê-lo; e o quanto se identifica com a profissão.

Nossos entrevistados, ao discorrerem sobre o que entendem ser a função da polícia, reiteram com frequência a ideia de “combater o crime”. Impedir que crimes ocorram e de reprimi-los quando ocorrem, bem como a manutenção da ordem pública eram as principais respostas à pergunta sobre a função de seu trabalho. Já ao responderem questões sobre a identificação com a profissão, duas razões apareceram em boa parte dos entrevistados: a existência de familiares que trabalhavam como policiais ou no exército e o “sonho” de ser policial militar cultivado desde a infância. Muitos policiais relataram que quando eram crianças gostavam da polícia, “de viatura”, “de farda”, das brincadeiras de “polícia e ladrão”, que viam os policiais como “super-heróis”.

Sobre as dificuldades enfrentadas no trabalho, curiosamente, muitos mencionaram “a população” e a “falta de respeito” em relação aos policiais. Para exemplificar, os policiais relatavam inúmeras situações nas quais as pessoas “questionam” as medidas e os procedimentos que eles adotam durante as abordagens. Em contrapartida, também emergiu a percepção de que a população recorre excessivamente à po­lícia, esperando que ela seja capaz de resolver os mais diferentes tipos de problema, inclusive aqueles que eles julgam que não são da alçada da PM. Frequentemente os policiais relacionavam esse excesso nas demandas da população à carência de outros serviços públicos, como a assistência social, jurídica etc. O que faz com que o policial também atue na orientação e encaminhamento dos mais diversos tipos de conflitos, sobretudo aqueles de natureza não criminal.

Essa visão também sugere que a formação recebida pelos policiais não os prepara para que possam atender às demandas que a população formula. Como apontado por Poncioni (2007), a formação policial prioriza as atividades relacionadas ao controle e ao enfrentamento das ocorrências criminais e pouco prepara os policiais para interagir com a população e para a mediação de conflitos não criminais.

A conclusão do nosso estudo aponta que, ainda que os policiais acreditem dispor do direito de exercer sua autoridade, há uma tensão entre a ex­pectativa de um trabalho baseado no heroísmo, na adrenalina e no “combate ao crime” e a realidade de um trabalho voltado à solução de conflitos interpessoais.

Com esta breve discussão, é possível notar que a manutenção do modelo de ati­vidade policial baseada na noção de “combate ao crime”, é problemática não apenas por tudo que já está discutido pela literatura nacional, como o uso abusivo da força, ao excesso de prisões provisórias, dentre outros. Esse modelo também prejudica a construção da autolegitimidade dos policiais, pois aposta numa formação e cria uma expectativa de trabalho que não condizem com o cotidiano de trabalho de grande parte da corporação.

Nesse sentido, é urgente pensar a revisão deste modelo de segurança pública, por meio de ações que fortaleçam tanto a legitimidade das instituições policiais, quanto a autolegitimidade desses agentes. Isto passa obrigatoriamente pela melhora na qualidade da relação entre a polícia e a sociedade e pela revisão da formação dos policiais e das expectativas criadas sobre “o que é a função da polícia”. Nos Estados Unidos, treinamentos baseados na teoria do procedural justice foram aplicados em diversas agências policiais, prezando sempre pela qualidade da tomada de decisões dos policiais e pela qualidade do tratamento que dispensam aos cidadãos em suas interações. Eis aí uma possibilidade e um caminho para pensar uma segurança pública baseada em evidências.

 

[1] Mais detalhes sobre a metodologia da pesquisa podem ser vistos no estudo citado.

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