Segurança no Mundo 15/03/2023

Cidadãos do Império: o terrorismo doméstico da ultradireita alemã

Ao rejeitar a legitimidade da república democrática, participantes de grupos da extrema-direita negam o próprio monopólio da força pelo Estado e se colocam fora do sistema legal, o que evidentemente implica diversas violações e crimes

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Ariadne Natal

Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute de Frankfurt (PRIF)

No dia 7 de dezembro de 2022, o Ministério Público Federal alemão executou a maior operação antiterrorismo doméstico da sua história. Cerca de 3.000 policiais, incluindo membros de forças especiais, revistaram mais de 130 propriedades, apreenderam armas e prenderam 25 suspeitos de tramar um golpe contra a República Alemã. Dentre os presos estavam um “príncipe”, um policial, dois coronéis aposentados, soldados e uma juíza e ex-deputada. Ao menos outras 30 pessoas são investigadas.

O plano, que já vinha sendo desenvolvido há mais de um ano, envolvia derrubar redes elétricas e atacar o parlamento alemão para a tomada de poder. A expectativa do grupo era criar caos e motins nas ruas e contar com apoio de parte das polícias e das forças armadas.

Os detidos são membros de um grupo extremista de ultradireita chamado União Patriótica (Patriotische Union), organizado em uma ala política e outra militar. No conselho político se delineava o novo arranjo de poder, o que incluía uma proposta para as futuras lideranças e inclusive ministros em uma espécie de governo paralelo. Já a ala militar era responsável por planejar ações, conseguir armas, treinar outros membros e recrutar agentes policiais e forças armadas. Dentre papéis apreendidos na ação existem listas de inimigos a serem eliminados e planos de instalar mais de 280 unidades armadas no país para prender e executar oponentes.

Embora coeso e organizado, a princípio o União Patriótica é um grupo numericamente diminuto, com pouca capilaridade e que superestima sua adesão popular e institucional, o que provavelmente inviabilizaria o sucesso em um efetivo golpe de Estado. Não obstante, o planejamento descoberto enseja preocupação, seja porque são capazes e dispostos a ações violentas reais, seja porque o grupo se filia a um movimento que é maior, mais antigo e mais pulverizado, os chamados Cidadãos do Império (Reichsbürger). Trata-se de extremistas de ultradireita que rejeitam a legitimidade do Estado Moderno e da República Federativa Alemã e buscam restaurar o Império Alemão, incluindo a manutenção de fronteiras pré-guerras. O argumento é de que o atual Estado alemão e sua Constituição não seriam autoridades soberanas, mas sim parte de um arranjo administrativo influenciado pelas Forças Aliadas que ocuparam o país no pós-guerra, o que tornaria a Alemanha vassala de interesses externos.

Ao rejeitar a legitimidade da república democrática, participantes destes grupos negam o próprio monopólio da força pelo Estado e se colocam fora do sistema legal, o que evidentemente implica diversas violações e crimes. É comum que se recusem a pagar impostos, tentem emitir seus próprios documentos ou mesmo criar seus bancos e moedas próprios. No limite, alguns chegam a justificar o uso da violência, inclusive contra policiais, como em um caso ocorrido em 2016 na Bavária, quando um autodeclarado cidadão do império matou um policial e feriu outros que cumpriam um mandato para apreender armas ilegais que mantinha em sua casa.

Concebido em meados dos anos 1980, mas por décadas praticamente incipiente (ou mesmo tratado de forma anedótica), atualmente estima-se que hoje existam ao menos 21 mil Cidadãos do Império, com um crescimento expressivo principalmente nos últimos anos. Seus membros são majoritariamente homens, com idade média de 50 anos, que muitas vezes se afastam da família e de círculos comunitários e tendem a acreditar em teorias conspiratórias. Durante a epidemia de COVID membros destes grupos aprimoraram consideravelmente seus braços digitais, ao passo em que se radicalizaram ainda mais. O discurso de deslegitimação do Estado encontrou eco e sinergia em movimentos que minimizavam a gravidade da epidemia e se recusaram a aderir a restrições sanitárias tais como distanciamento social, uso de máscaras e aplicação das vacinas, sob o argumento que não devem se submeter a autoridades que não reconhecem, amplificando as teorias dos cidadãos do império.

O negacionismo é traço marcante dos participantes, que, aliado ao racismo, à xenofobia, à anti-imigração e ao antissemitismo, forma um caldo que aproxima este a outros movimentos extremistas de direita similares que despontam pelo mundo. Muitas das conexões internacionais do grupo se dão por meio da crença e participação em teorias da conspiração transnacionais, como o QAnon, que fala de um Estado Profundo (Deep State) e planos secretos de dominação mundial por poderosos satanistas que traficariam e explorariam crianças.

Apesar das ideias absurdas e que beiram o ridículo, e ainda que politicamente esses grupos extremistas sejam pouco representativos e marginais, o potencial de dano e violência que podem causar é considerável e, por essa razão, é preciso levá-los bastante à sério. Aparentemente isso é justamente o que as autoridades alemãs têm feito ao tratar as ameaças como terrorismo doméstico. Por essa razão, mantêm constante supervisão dos fluxos de informação em redes sociais e canais de comunicação, o que permitiu inclusive avançar nas ações de inteligência e realizar operações antes que o plano contra a segurança nacional fosse colocado em ação.

As investigações ainda seguem, mas, para além das respostas institucionais de lei e ordem, o desafio que se impõe é como desencorajar a adesão popular a tais movimentos e tratar essa não apenas como uma questão de segurança pública, mas principalmente de defesa da democracia.

Fontes: 

Koehler, Daniel. 2022. “Germany Targets One of Its Largest Far-Right Domestic Extremist Groups.” International Centre for Counter-Terrorism – ICCT. https://www.icct.nl/publication/germany-targets-one-its-largest-far-right-domestic-extremist-groups (March 12, 2023).

Kupper, Julia, and Dittrich Miro. 2023. “The Reichsbürger Coup: How the German COVID-19 Denier Scene and Anti-Lockdown Movement Became a Breeding Ground for Terrorism.” Global Network on Extremism & Technology. https://gnet-research.org/2023/01/18/the-reichsburger-coup-how-the-german-covid-19-denier-scene-and-anti-lockdown-movement-became-a-breeding-ground-for-terrorism/ (March 13, 2023).

Schlegel, Linda. 2019. “‘Germany Does Not Exist!’: Analyzing the Reichsbürger Movement.” European Eye on Radicalization. https://eeradicalization.com/germany-does-not-exist-analyzing-the-reichsburger-movement/ (March 13, 2023).

 

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