Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social (UFF), Cabo na PMMG e Presidente do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Erick Guimarães
Físico (UnB), Químico, Idealizador do Projeto “Cuide-se Policial”, Perito Criminal na PCMG e dedicado aos estudos sobre Saúde Mental de Policiais e Bombeiros
Treinados para enfrentar situações que a maioria das pessoas evita a todo custo, profissionais da segurança pública — como policiais e bombeiros — estão constantemente expostos a episódios traumáticos. Essa exposição frequente os condiciona a um envolvimento empático com as vítimas desses eventos, o que, muitas vezes, resulta em impactos emocionais profundos, semelhantes aos observados no Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Esse transtorno é amplamente reconhecido como uma das consequências da vivência direta de experiências extremas e violentas, algo comum no dia a dia dessas profissões.
Por outro lado, existe o chamado trauma vicário, que se manifesta não pela vivência direta do evento traumático, mas pela exposição repetida a relatos de sofrimento intenso. Esse tipo de trauma tem recebido atenção crescente e é influenciado por diversos fatores. Nos últimos anos, o tema passou a integrar debates legislativos importantes, como os que motivaram a promulgação da Lei nº 14.531/2023. Essa lei altera normas anteriores — como a Lei nº 13.675/2018, que institui a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), e a Lei nº 13.819/2019, voltada à prevenção da automutilação e do suicídio —, com o objetivo de implementar políticas de assistência social, promoção da saúde mental e valorização da vida dos profissionais de segurança pública e defesa social. Também busca estabelecer diretrizes nacionais para a promoção e defesa dos direitos humanos desses trabalhadores.
O tema reforça a urgência de debates já apresentados em textos anteriormente publicados, além de estar alinhado com alertas das duas últimas edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que evidenciam o crescente adoecimento psíquico entre policiais e o aumento preocupante de suicídios na categoria.
Entretanto, ainda persiste o estereótipo de que policiais e bombeiros são figuras inabaláveis, dotadas de uma força extraordinária. Esquecemos, muitas vezes, que por trás do uniforme há um cérebro humano, tão vulnerável quanto qualquer outro — com a diferença de que esses profissionais enfrentam diariamente o pior da natureza humana.
Enquanto o cidadão comum pode mudar de canal ao se deparar com notícias perturbadoras, bombeiros e policiais lidam com a brutalidade da realidade sem filtros: enfrentam acidentes fatais, cenas de violência doméstica, abusos contra crianças, entre outras ocorrências impactantes. No caso do TEPT, por exemplo, não se trata de “falta de preparo psicológico”, mas de alterações físicas e mensuráveis no cérebro. A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de se reorganizar — acaba, nesse contexto, atuando contra o indivíduo: 1) a amígdala, área responsável por respostas emocionais, torna-se hiperativa, funcionando como um alarme sempre ligado; 2) o córtex pré-frontal, que regula impulsos e emoções, perde eficiência; e 3) o hipocampo, responsável pela memória, pode ter seu volume reduzido.
Essas alterações são tão reais quanto uma fratura ou uma lesão muscular, embora invisíveis a olho nu. Elas também estão presentes em outros transtornos, como depressão e ansiedade, reforçando a gravidade do impacto.
No trauma vicário, um dos principais mecanismos envolvidos é o dos neurônios-espelho — estruturas cerebrais que se ativam tanto quando sentimos uma emoção, quanto quando vemos alguém vivenciá-la. É o que explica sensações como a “vergonha alheia”. Para socorristas e agentes de segurança, esses neurônios “espelham” o pânico, a dor e o desespero das vítimas, fazendo com que o trauma seja, literalmente, absorvido pelo cérebro.
Com a exposição contínua a experiências extremas, o cérebro desses profissionais passa a associar certos estímulos com perigo iminente. A amígdala os registra como ameaças, hormônios do estresse como o cortisol inundam o corpo, e o sistema nervoso “aprende” a reagir de forma exagerada a qualquer sinal similar. Com o tempo, esse ciclo torna-se autossustentável: o cérebro permanece em estado de alerta constante, mesmo em contextos seguros.
Como consequência, sons corriqueiros — como uma sirene ao longe, fogos de artifício ou o choro de uma criança — podem desencadear reações físicas intensas, como sudorese, taquicardia ou flashbacks. Tais respostas não são escolhas conscientes, mas reações automáticas de um cérebro moldado pelo trauma.
A boa notícia é que essa mesma neuroplasticidade que contribui para o adoecimento também permite a recuperação. Abordagens terapêuticas como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e a Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares (EMDR) têm se mostrado eficazes na reestruturação de conexões neurais. O uso de medicação pode ser um importante apoio complementar.
Felizmente, algumas instituições já começam a implementar programas de apoio psicológico, reconhecendo que cuidar da saúde mental desses profissionais não é apenas uma questão de bem-estar individual, mas um pilar fundamental para a segurança pública — conforme preconiza a Lei nº 14.531/2023.
O tratamento e a prevenção do trauma vicário não são luxos. São necessidades médicas baseadas em evidências. Apoiar policiais, bombeiros e demais agentes que buscam ajuda é reconhecer que até o cérebro mais corajoso tem seus limites biológicos.
É hora de tratarmos a saúde mental desses profissionais com a mesma seriedade que damos a suas lesões físicas. Afinal, quem cuida, também precisa ser cuidado.
Para saber mais consulte: https://cuidesepolicial.com.br/ .