Caso Genivaldo e as bases institucionais da violência policial brasileira
Casos de violências cometidos por policiais são levados em conta pelas corporações, em geral, quando ganham repercussão negativa na sociedade civil. Do contrário, a violência passa como se fosse legítima na atividade policial
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Os agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que, em maio deste ano, envolveram-se na nefasta execução de Genivaldo de Jesus Santos, entregaram-se à Justiça. Eles foram presos provisoriamente e, agora, respondem pelos crimes de abuso de autoridade, tortura e homicídio qualificado. Assim, com a eventual condenação dos envolvidos, talvez com expulsão deles da corporação, encerra-se mais um trágico caso de violência policial. Enquanto isso, a PRF, apesar de algum desgaste em sua imagem, provavelmente prosseguirá sua trajetória como se não tivesse responsabilidade na morte de Genivaldo.
Embora o supracitado caso trate da PRF, uma corporação que não figura no rol das mais violentas do país – como, por exemplo, as polícias estaduais do Amapá, Goiás, Sergipe, Bahia e Rio de Janeiro –, o fenômeno não é particularidade dela, porém algo mais amplo. É fato. Em regra, casos de violência policial são tratados como desvios dos agentes e dificilmente como problemas institucionais. Pior: casos de violências cometidos por policiais são levados em conta pelas corporações, em geral, quando ganham repercussão negativa na sociedade civil. Do contrário, a violência passa como se legítima fosse na atividade policial.
No âmbito das corporações brasileiras há certa tolerância com abusos cometidos por seus agentes, especialmente quando são avaliados como realizados no cumprimento do dever legal. De algum modo, no âmbito das polícias, em seus processos formativos de novos integrantes e no exercício da atividade policial, a violência é transmitida e reproduzida como meio não apenas legítimo, mas também eficaz para condução da missão de lei e ordem. Com efeito, em muitas polícias, aprende-se e se executa a violência de forma institucional; não é apenas fenômeno isolado na figura de um ou outro agente.
Como já observou a professora Maria Stela Grossi Porto, da Universidade de Brasília (UNB), numa pesquisa com polícias do Distrito Federal: “a violência policial só pode ser pensada como legítima na medida em que se circunscreve e se restringe ao âmbito legal”. Ademais, a professora ressalta que, no âmbito das representações sociais dos policiais, por exemplo, do que seriam modelos ideais de polícia, os agentes reconhecem a violência como forma adequada de controle social a fim de garantir a lei e a ordem. Esse achado é curioso, porquanto a investigação foi realizada nas polícias da Capital Federal, as quais são reconhecidas por serem as menos violentas do país.
Diante disso, é pouco provável que os inúmeros casos de violência cometidos por policiais brasileiros – especialmente situações de letalidade policial, com mais de 6 mil casos em 2021 – sejam tão-só condutas individuais dos agentes. É fato. As corporações possuem responsabilidades imediatas nos abusos perpetrados por seus integrantes, tendo em vista que muitas formas de violência são aprendidas, consentidas e rotinizadas no cotidiano da atividade policial. Afinal, em muitas polícias brasileiras o culto à violência é estrutural, pois está expresso ou implícito em seus manuais, protocolos, comportamentos, mentalidades, valores; o que acaba sendo reproduzindo entre seus agentes como próprio da condição do labor policial.
O caso da morte de Genivaldo é emblemático para discutir o dilema da violência policial, porquanto mesmo na PRF – uma corporação vista como modelo e com escassos relatos de violações aos direitos humanos –, abusos podem acontecer. É óbvio que na PRF o ato de trancar um suspeito no cubículo de uma viatura e lançar gás lacrimogênio não foi repassado pelos processos formais de ensino e nem adotado como protocolo de abordagem. Todavia, é triste observar que o caso Genivaldo só ganhou notoriedade em decorrência da morte dele e pouco pelo procedimento adotado pelos agentes da corporação. Assim, talvez se o fato não tivesse tido um desfecho fatal, nem ganhado as mídias e redes sociais, a situação permanecesse informalmente aceita nas atividades da corporação como artifício de contenção de insurgentes.
Apesar de se estar falando da PRF, o problema não é exclusividade dessa corporação. Tampouco, por mais trágico que tenha sido a morte de Genivaldo, não se limita a esse episódio. Ao contrário, trata-se de fenômeno atinente ao conjunto das polícias brasileiras e aos inúmeros eventos de cidadãos marginalizados submetidos à brutalidade policial. Por conta disso, as polícias enquanto agências do Estado para promoção da segurança pública, precisam admitir suas responsabilidades em ações abusivas operadas por seus integrantes, visto que eles significam a personificação dessas corporações. Ademais, as polícias deveriam refletir sobre suas condutas na cultura da violência, em vez de se limitarem à tese de culpar os agentes desviantes.
Destarte, o caso Genivaldo não poderia se ater à condenação dos policiais envolvidos, pois as bases institucionais da violência policial ainda persistem, na PRF e noutras polícias pelo país afora. Com efeito, esse caso deveria ser um paradigma para provocar reformas profundas nas estruturas das polícias brasileiras, assim promovendo corporações alinhadas aos princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da democracia.