Cara, crachá: dinâmicas de controle penal e seletividade racial
As operações policiais não obedecem a protocolos capazes de orientar a aplicação de padrões éticos, evidenciando a ausência de “discretion” e “accountability” não somente da polícia, mas também do sistema de justiça criminal
Izabella Lacerda Pimenta
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF/Brasil. Pesquisadora visitante do Departamento de Criminologia da University of Ottawa (Canadá) e do Correctional Service of Canada (2012-2013). Pesquisadora do Laboratório de Gestão de Políticas Penais – LabGEPEN da Universidade de Brasília – UnB/Brasil
“A carteira assinada dá tranquilidade pro cara pensar. (…) Ele não pode ser confundido na rua como vagabundo. Isso faz a polícia parar ele e pronto, ele vai parar na cadeia.”[1]
São muitos os significados e os efeitos práticos associados ao fato de se portar uma carteira de trabalho no Brasil. Ela, evidentemente, não é a única forma de registro e não abarca a complexidade que uma carreira profissional engloba mais amplamente. Antes disso, o documento representa o registro de uma vida profissional reconhecido e legitimado pelo Estado, a partir do exercício de determinadas profissões, o que implica uma série de inclusões, mas também de exclusões, considerando, principalmente, a reforma trabalhista, uma política de austeridade que reduziu drasticamente a proteção social ao trabalho consubstanciada na Lei nº 13.467/2017[2].
Portar uma carteira de trabalho assinada, portar um contracheque, utilizar de forma visível um crachá de identificação da instituição laboral ou estar vestido com o uniforme da “firma” são algumas das formas materiais de acionamento da identidade de trabalhador no espaço público. Esse acionamento identitário pode, por sua vez, afastar ou mesmo apagar as identidades comumente associadas ao não-trabalhador nas suas possíveis variações, como “marginal”, “vagabundo” e “bandido”, evitando situações que favoreçam o ‘insulto moral’ (Cardoso de Oliveira, 2002)[3] ou mesmo a prisão, como trataremos adiante. Nessa direção, o caso a seguir é bastante elucidativo.
Frank é um egresso do sistema prisional. Por não possuir a carteira nacional de habilitação (CNH), documento que regulamenta e autoriza motoristas na condução de veículos automotores, evita utilizar seu carro, especialmente em áreas mais movimentadas e policiadas do Rio de Janeiro. Um dia, porém, ao optar pela utilização do seu automóvel, foi parado em uma operação policial, uma blitz. Como não portava a CNH, Frank foi extorquido por um dos policiais. Relembrando o ocorrido, em meio a lamentos e sorrisos, Frank considera que a extorsão dos policiais poderia ter sido maior e ter gerado maiores transtornos: “Não apreenderam meu carro porque viram que eu sou trabalhador. Eu não tava de bobeira. Tava lá no banco, o crachá da ONG [onde trabalho]. Eles viram, nem precisou de falar nada. Eu também não quis ficar chorando desconto. Abri logo a carteira e dei meu galo[4], o único que eu ainda tinha na carteira.”
Apesar de ter sido extorquido, Frank não se considerou objeto de ‘insulto moral’ porque, segundo o seu entendimento, faz parte da atividade policial “levantar uma grana de quem não está nos conformes da lei”. Ademais, para haver ‘insulto moral’ deve não somente haver ‘desrespeito’ a direitos legais no espaço público, mas, também a ‘desconsideração à pessoa do cidadão’. Neste caso, Frank é, na sua própria visão, “reconhecido” como um trabalhador distinto através do crachá, o que é positivado e lido como instrumento da sua identidade de trabalhador. Isso por si só não é algo simplório na visão do interlocutor. Admite-se, a partir disso, que não existe no Rio de Janeiro apenas um proceder da polícia durante as abordagens aos indivíduos e que “(…) os policiais ‘incorporam’ diversos personagens ao lidar com distintos públicos, dependendo de quem são, do que representam, de onde se situam na hierarquia social” (Caruso, 2010)[5]. Neste caso, em especial, Frank é identificado como um trabalhador, mas não um trabalhador qualquer, pois o crachá também não era de uma instituição qualquer.
Quanto à abordagem policial, notamos que as operações policiais não obedecem a protocolos capazes de orientar a aplicação de padrões éticos, evidenciando a ausência de “discretion” e “accountability” não somente da polícia, mas também do sistema de justiça criminal. Assim, segundo Kant de Lima (2013)[6], o comportamento tradicional da polícia e suas práticas cotidianas geralmente são executadas sem guardar conformidade com o instituído na lei. É por isso que Frank, uma pessoa autodeclarada parda, no final das contas, se sentiu aliviado por ter sido reconhecido como um trabalhador – através do crachá pendurado no retrovisor interno do veículo – e, com isso, ter “perdido apenas um galo para a polícia” durante a abordagem, mesmo diante da constatação do ilícito de dirigir sem CNH.
O fato de Frank ter conseguido escapar da aplicação da lei, o que resultaria, no mínimo, na apreensão do seu carro e aplicação de multa, relaciona-se ao fato de os policiais terem-no reconhecido como um trabalhador, mas não um trabalhador qualquer. Isso nos remete novamente ao tratamento desigual que, no Brasil, é costumeiramente aplicado pelas instituições aos indivíduos:
(…) as estratégias repressivas de controle social próprias das sociedades juridicamente desiguais, em que as regras, por definição, não representam a proteção para todos – porque não são aplicadas de maneira uniforme e universal, e sim de maneira particularizada e diferenciada aos seus membros, por definição desiguais –, têm como consequência a naturalização do processo de externalização dessas mesmas regras, isto é, são representadas como exteriores aos sujeitos, não propiciando condições para sua normalização. Essa circunstância, que justifica oficialmente a repressão de uns segmentos da sociedade sobre os outros, enseja justificativas socialmente legítimas para sua violação sistemática pelos indivíduos não normalizados.[7]
A atuação particularizada e diferenciada da polícia que opera segundo o status do indivíduo e em territórios específicos não é uma prática isolada, mas enraizada na própria conformação da sociedade brasileira. As instituições brasileiras, nesse caso específico, as polícias, foram estruturadas com base na naturalização e na incorporação de critérios de desigualdade no tratamento dos indivíduos, incluindo práticas racistas. Ainda, “o modelo de policiamento vigente contudo, possui significativa aderência popular, porque se apega à primazia da violência como gramática de resolução de conflitos, especialmente daqueles que dizem respeito aos negros; e à noção de ordem e progresso como silêncio e controle das massas negras e empobrecidas.”[8]
Nessa direção, a vadiagem[9], contravenção penal prevista no Decreto-Lei nº 3.688/1941, integra imaginários sociais com efeitos práticos e de extermínio de parcelas sociais específicas. No que tange ao enfrentamento dessa contravenção penal, as práticas policiais sempre tiveram a população pobre — majoritariamente negra – como alvo:
A tipificação penal da vadiagem vem de uma época em que prevalecia o chamado direito penal do autor. Punia-se a pessoa pelo que ela era, não pelo que ela fazia. Esse direito penal foi depois aplicado em regimes como o fascista, o nazista e o stalinista. Na democracia, não há espaço para ele. (…) Esse é um exemplo típico de controle dos indesejados, daqueles que não interessam ao poder econômico. Viver na ociosidade sendo pobre dá cadeia, mas viver na ociosidade sendo rico dá coluna social. Podemos pensar em Jorginho Guinle, uma figura cultural famosa do Brasil [cuja família construiu o hotel Copacabana Palace], que se orgulhava de jamais ter trabalhado na vida. Ele nunca responderia a um processo por vadiagem.[10]
Posto de maneira simples, entendemos que no Brasil, ser capaz, ou não, de se manter afastado das teias do sistema penal é uma tarefa notadamente mais árdua para jovens negros do que para jovens brancos, ainda mais se esses jovens negros forem pobres e periféricos, sem trabalho ou com trabalhos precarizados. Para se aproximar dos preceitos da social-democracia próprios do Estado democrático de direito no Brasil é preciso reconhecer e repensar as desigualdades que conformam nossas instituições. O enfrentamento dessas questões prevê pautar programas antirracistas com foco na garantia da dignidade da pessoa humana, nas diversas arenas sociais (já que o racismo é estrutural e estruturante), mas, sobretudo, no âmbito da segurança pública e da justiça criminal, já que as pessoas negras – de forma massiva e ininterrupta – permanecem lotando o cárcere.
[1] Os relatos nativos foram extraídos da tese: PIMENTA, Izabella Lacerda. Dos acessos ao “mundo do trabalho”- uma etnografia sobre os processos de construção institucional de presos e egressos no Rio de Janeiro (Brasil) e em Ottawa (Canadá). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense. Niterói-RJ, 2014.
[2] A capacidade de estimulação do crescimento econômico ou de enfrentamento à informalidade no mercado de trabalho pode ser questionada, uma vez que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), indicou que a média anual de trabalhadores sem carteira de trabalho assinada atingiu 12,9 milhões em 2022. O número de pessoas nessa situação aumentou 14,9% em relação a 2021, quando havia 11,2 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.
[3] CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito Legal e Insulto Moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
[4] Galo corresponde ao número 50 na prática do jogo do bicho, contravenção penal prevista no Decreto-Lei nº 3.688/1941, um tipo de ‘loteria informal’ popular no Brasil, mas considerada uma prática ilegal. Neste caso, Frank fazia alusão à cédula de R$50,00 que havia “perdido” para o policial no momento da extorsão.
[5] CARUSO, Haydeé. ‘Choque de ordem na Lapa’: uma análise sobre as lógicas e práticas de policiamento no ‘centro cultural’ do Rio de Janeiro. In: KANT DE LIMA, R.; EILBAUM, L. & PIRES, L. (orgs.). Conflitos, direitos e moralidades em perspectiva comparada. V. I. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
[6] KANT DE LIMA, Roberto. Entre as leis e as normas: Éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na Justiça Criminal. In: Revista Dilemas. Vol. 6 – n. 4, out-nov-dez, 2013.
[7] Idem. p. 565-566.
[8] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Nota Técnica – Racismo Estrutural e Segurança Pública: caminhos para a garantia do direito às vidas negras, 2023.
[9] Ver Projeto de Lei n° 1212, de 2021. Iniciativa: Senador Fabiano Contarato (REDE/ES). Ementa: Revoga o art. 59 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 – Lei de Contravenções Penais. 29/08/2023. CCJ – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Situação: Aguardando Designação do Relator. Ação: Matéria aguardando distribuição.
[10] Trecho extraído de Agência Senado (2023), por Ricardo Westin https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2023/09/delito-de-vadiagem-e-sinal-de-racismo-dizem-especialistas#:~:text=A%20vadiagem%20foi%20um%20crime,delito%2C%20por%C3%A9m%2C%20foi%20perdida.