Múltiplas Vozes 30/10/2024

Caminhos para a padronização das estatísticas de Segurança Pública no Brasil

Um bom sistema de informações oficiais exige, acima de tudo, um adequado desenho de governança e coordenação federativa. Sem ele, de nada adianta gastar milhões de reais em tecnologia

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Renato Sérgio de Lima

Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da FGV EAESP

Em 2018, quando o então Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, convidou-me para coordenar o GT responsável pela minuta de Decreto da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, idealizei a criação do Instituto Nacional de Estudos sobre Segurança Pública – INESP, a exemplo do INEP, do Ministério da Educação, e que tem tido papel central na política educacional brasileira ao fomentar avaliações sistemáticas e produzir dados de referência. O Instituto quase foi aprovado no Congresso mas, na última hora, acabou sendo vítima de ruídos entre áreas do governo federal e não foi adiante. Em 2022, durante a campanha eleitoral, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública retomou a ideia e incluiu a proposta do INESP no documento que enviou a todas as candidaturas presidenciais .

Hoje o Governo Federal já conta com diversos sistemas de informação, sendo o SINESP aquele que a Lei do SUSP prevê como a grande plataforma de estatísticas públicas da área. Porém, entre vários problemas específicos, a governança do SINESP sempre tem sido pensada de modo a apenas centralizar no MJSP dados subnacionais produzidos pelas Unidades da Federação. Dados de outras áreas do próprio MJSP, como as Polícias Federal e Rodoviária Federal, bem como a SENAPPEN e/ou a SENAD, são tratados em sistemas paralelos.

Para além dessa restrição de escopo do SINESP, o Decreto 9.876/2019, publicado pelo Governo Bolsonaro, altera o desenho feito por nós em 2018 e institui um formato de Conselho Gestor do SINESP sem nenhuma participação de representantes de Universidades, Centros de Pesquisas Aplicadas ou da sociedade civil, em oposição ao espírito da Lei do SUSP, que propugna ampla participação da sociedade na agenda da segurança. O Governo Lula, friso, não fez nenhum ajuste neste Decreto para reincorporar a participação de outros segmentos que não as instituições de segurança pública. Talvez porque os antagonismos que têm marcado o debate sobre a área no país foram naturalizados pelas opções político-institucionais.

O fato é que se existisse esse tipo de previsão, talvez o SINESP poderia se beneficiar do acúmulo de conhecimento produzido pela Universidade e por diferentes entidades da área no que diz respeito à fidedignidade dos dados, incluindo a experiência na elaboração de “shadow reports” no campo da segurança pública, justiça criminal e proteção de Direitos Humanos. A prioridade política não pode derivar do tempo da burocracia e da análise das conveniências de conjuntura. Aliás, criticar a sociedade civil e as pesquisas acadêmicas quando elas trazem temas à tona é reproduzir a estratégia comum de desacreditar o mensageiro para não ter que lidar com a gravidade da mensagem.

Outra questão associada é que as avaliações previstas na Lei do SUSP e/ou até mesmo no Decreto 9.876/2019 promulgado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro não foram produzidas e divulgadas amplamente. Avaliações estas que deveriam, inclusive, contar com a supervisão do Congresso Nacional e serem objeto de ampla escuta e divulgação. Impressiona o quanto discutir avaliação de resultados ou de impactos encontra pouco eco nos gestores da segurança pública, com honrosas exceções, muitas delas no plano subnacional.

Até o momento, quando a dimensão da governança do SUSP é discutida, muito se fala dos aspectos tático-operacionais da atividade policial. Pouco se debate sobre as regras de transparência, prestação de contas e accountability que, ao fim e ao cabo, são as mais importantes indutoras de inovação e transformação.

Ou seja, ao escantear mecanismos de monitoramento e avaliação do rol de prioridades de gestão, os dirigentes da área não deveriam se surpreender que a roda gire continuamente em falso e que o debate fique à mercê das crises. Problemas e cenários não são antecipados em suas dimensões política e estratégica (os problemas são operados pontualmente em torno da dimensão tático- operacional; de inteligência e operações). Soluções estruturantes são vistas como distantes da realidade.

Mas por que este texto agora? É que o presidente Lula deve conversar nos próximos dias com  todos os governadores do país acerca da PEC sugerida pelo ministro Ricardo Lewandowski para constitucionalizar o SUSP e buscar construir uma agenda de convergências para a área e um modelo de cooperação federativa para a Segurança Pública. Se a PEC for encampada pelo presidente e pelos governadores e enviada ao Congresso, a perspectiva é positiva, na medida em que toca em questões tidas como menos urgentes diante das crises e tragédias que se acumulam nas últimas décadas e fazem com que segurança seja uma das principais preocupações da população.

Por esta razão, aproveitando a ideia de convergências, creio que há espaço para sugerir um caminho complementar que já pode ser percorrido e que depende mais de regulamentação do que já está na CF. Da mesma forma como fiz na proposição do INESP, creio que vale ousar na proposição de ideias. Assim, penso que a tão discutida e politicamente carregada discussão sobre a padronização nacional das estatísticas criminais já está no rol de atribuições da União e que não depende apenas do que está previsto na Lei do SUSP.

O item XV do Artigo 21 da Constituição Federal diz que cabe à União, “organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional”. Pela jurisprudência, essa atribuição foi delegada ao IBGE, que tem poder de padronização no nível nacional de dados estatísticos. A Lei que rege o IBGE é a  nº 5.534 de 14 de novembro de 1968. Ela não diz que o item XV é atribuição exclusiva do IBGE. Porém, em seu artigo 1º, essa lei prevê que “toda pessoa natural ou jurídica de direito público ou de direito privado que esteja sob a jurisdição da lei brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pela Fundação IBGE para a execução do Plano Nacional de Estatística”.

Ou seja, aqui temos dois caminhos rapidamente possíveis. Um primeiro, mais rápido e em linha com a tradição estatística brasileira, é a publicação de um decreto incluindo o tema segurança pública e o rol de estatísticas da área no Plano Nacional de Estatística coordenado pelo IBGE. O MJSP poderia, nesse caso, prever uma TED, transferência de recursos para órgãos federais, de modo a estruturar uma área específica no IBGE, incluindo a padronização de registros administrativos e a produção de pesquisas de vitimização. Pelo comando constitucional, as normas e classificações para fins estatísticos teriam caráter vinculativo e seriam compulsórias para todas as instituições da área, sejam elas federais, estaduais ou municipais. Com certeza o IBGE tem qualificação técnica e credibilidade institucional para ficar encarregado desta tarefa. Produzir estatística não é a mesma coisa do que manter um sistema de informações e registros operacionais.

Uma segunda opção, mais demorada porém mais focada, é o envio de um PL (projeto de lei) criando o Instituto Nacional de Estudos em Segurança Pública – INESP que atribua a ele o poder de organização, manutenção da padronização nacional das estatísticas nacionais oriundas dos registros administrativos das instituições que compõem o SUSP e estão previstas no Artigo 144 da CF. Esse Projeto de Lei poderia também incluir uma proposta de Lei Geral de Proteção de Dados em Segurança Pública e Persecução Penal, que não estão sujeitos à atual LGPD em vigor. Essa inclusão contribuiria para definir regras de compartilhamento de dados mais claras e para a distinção entre dados, estatísticas públicas e informações de inteligência.

Seja como for, o que quero chamar atenção aqui é que o argumento da falta de padronização das estatísticas policiais é, essencialmente, um argumento político que perde força se novas estratégias de governança democrática forem adotadas. Há caminhos dentro do atual marco constitucional e legal. Um bom sistema de informações oficiais exige, acima de tudo, um adequado desenho de governança e coordenação federativa. Sem ele, de nada adianta gastar milhões de reais em tecnologia.

Agora, se a PEC que está sendo anunciada de fato for adiante, ela pode ser um momento de inflexão e revalorização dos mecanismos de monitoramento e avaliação formulados na ideia de avaliação, transparência e prestação de contas. Enquanto essas dimensões não forem adotadas como eixos estruturantes da ação governamental, o que teremos é apenas o incremento de um modelo pouco eficiente na prevenção da violência, no enfrentamento do crime e na garantia do direito social à segurança. E, digno de nota, as próprias polícias já entenderam isso ao apoiarem as versões aprovadas das Leis Orgânicas Nacionais das Polícias Civil e Militar (e Corpos de Bombeiros Militares), que incluem a transparência ativa de dados como um dos seus princípios basilares.

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