Ana Carolina Haliuc Bragança
Procuradora da República e especialista em Direito Ambiental pela UFPR
Imagens de paredões de balsas no Rio Madeira escandalizaram o Brasil e o mundo nos últimos dias. Imediatamente, os poderes públicos foram cobrados, prometeram resposta, e no último sábado iniciou-se ação repressora dos órgãos ambientais, notadamente do IBAMA, com amparo de forças policiais.
A existência de centenas de balsas atuando no garimpo ilegal de ouro em pontos diversos da Amazônia não é nenhuma novidade. Rios como o Tapajós, o Jutaí, o Uraricoera e o Mucajaí, e, mais recentemente, em grande intensidade, o Rio Japurá e outros da bacia do Alto Rio Negro abrigaram e abrigam enorme quantidade de balsas ou dragas. O próprio Rio Madeira nunca deixou de ter alta movimentação de embarcações dedicadas ao garimpo ilegal de ouro, apesar de fiscalizações ocorridas em 2017, que resultaram na destruição das balsas apreendidas. Naquela ocasião, garimpeiros queimaram as sedes do IBAMA e do ICMBio no Município de Humaitá, no Amazonas, em revide à ação repressora.
A incapacidade do Estado de lidar com o problema do garimpo ilegal de ouro na Amazônia não é recente, portanto. Mas algo de especial houve nas imagens desta semana, que justificaram a atenção que lhes foi dada: não se tratava de mais uma grande concentração de balsas, apenas, mas de um recado que se estava a dar pela própria conformação espacial das embarcações. O incidente no Rio Madeira foi uma demonstração de poder, uma tomada formal de território, uma declaração no sentido de que o garimpo não se daria mais às escondidas, como até então fazia, mas às claras, porque não haveria quem o pudesse desmobilizar. Os áudios circulados entre grupos de garimpeiros e reproduzidos na mídia nacional confirmam essa hipótese.
Há dois aspectos a serem considerados num contexto como o apresentado. Primeiro, a extração ilegal de ouro deixou de ser um problema localizado, relacionado à atuação do garimpeiro rudimentar, com sua pá e picareta, e se tornou um lucrativo negócio erigido por verdadeiros empresários sob estruturas de criminalidade ambiental organizada. Os crimes de lavra de minérios sem licença ambiental e de usurpação de matérias-primas de propriedade da União, tipificados, respectivamente, nos artigos 55 da Lei n. 9.605/1998 e 2º da Lei n. 8.176/1991 são apenas o começo da conversa.
A introdução do ouro ilegalmente extraído no mercado nacional pressupõe a prática de fraudes documentais e crimes de lavagem de capitais. Garimpos são locais propícios para a exploração de mão de obra, sendo comum a presença de trabalhadores submetidos a condição análoga à de escravo. A exploração sexual de mulheres e meninas também pode ocorrer com frequência, abrindo espaço para delitos como o tráfico de pessoas. Mais recentemente, vínculos entre a extração ilegal de ouro e o tráfico de drogas começaram a vir à tona, à medida em que facções criminosas se deram conta das facilidades de se lavar ouro no Brasil. A potencialidade de agregação de delitos em torno do garimpo é enorme e, embora nem toda extração ilegal de ouro implique a existência de todos esses crimes, minimamente o pacote “crime ambiental, crime contra o patrimônio e lavagem de capitais” se faz sempre presente.
Desse primeiro aspecto, se conclui que a extração ilegal de ouro deve ser tratada como de fato se apresenta juridicamente: como criminalidade organizada. E não se combate crime organizado sem inteligência, sem foco, sem preparo. Haja inocência, por exemplo, para acreditar que vinte mil garimpeiros sairão presos da Terra Indígena Yanomami: não há Estado Policial que seja capaz de promover uma solução como essa. Mas certamente todos os líderes que propiciam a existência do garimpo, que o fomentam, que o financiam, devem ser investigados e processados criminalmente. Identificá-los e colher provas suficientes e robustas para sua condenação deve ser prioridade das agências governamentais, sem prejuízo das necessárias ações repressoras imediatas.
Por outro lado, e aqui menciono o segundo aspecto a se considerar, tampouco se pode descurar do fato de que a propagação do garimpo ocorre historicamente em um cenário socioeconômico desolador.
Em um dos áudios divulgados, um garimpeiro menciona que o dinheiro do garimpo é o primeiro a chegar nos municípios da Amazônia. E de fato muitas vezes o é, num fenômeno que venho chamando de captação de economias pelo ilícito. Para muitos amazônidas, o garimpo é a única forma de geração de renda que se apresenta. Não falo aqui dos empresários citados acima, mas das populações locais empobrecidas, que não enxergam outras saídas – e o Estado tampouco está lá para oferecê-las. Não por acaso, o crescimento do garimpo dos últimos anos ocorreu em período de grave crise econômica, a despeito de também existirem outros fatores alimentando-o.
Por mais eficaz que fosse o Estado em sua atividade investigativa e repressiva de crimes, não haveria sucesso no combate ao garimpo ilegal de ouro – e a outros ilícitos ambientais na Amazônia – sem atenção à pobreza e à desigualdade social na região. E veja-se: 520 anos de um modelo de desenvolvimento fundado na expansão da agropecuária de grande porte e da mineração na região não resolveram esses problemas, e nem vão resolver. Essas populações não vão ser atendidas decentemente por um Estado propondo mais do mesmo. Uma mudança de paradigma de desenvolvimento é necessária.
A Amazônia precisa de mais Estado: precisa de investigações mais eficientes e de equipes mais preparadas em todos os órgãos, para o fim de combater a criminalidade organizada e as ameaças ao Estado Democrático de Direito que avultam na região. Mas precisa também de mais Estado Social, de propostas de desenvolvimento que olhem para os potenciais da região e valorizem a sociobiodiversidade e gerem bem-estar para as populações. Falhando nas duas frentes, podemos esperar: esses paredões de balsas foram apenas os primeiros.