Múltiplas Vozes 17/04/2025

Atuação da Polícia Civil na enchente de 2024 no Estado do Rio Grande do Sul

Em um novo desastre natural, várias medidas se fazem necessárias para que os policiais civis possam estar preparados para cumprir seu mister de servir e proteger a população

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Melina Zogbi Bueno Correa

Delegada de Polícia Civil/RS; Mestranda no Programa de Pós-graduação em Segurança Cidadã/UFRGS

É importante reconhecer o trabalho da Polícia Civil na enchente de 2024 no estado do Rio Grande do Sul. Embora sem atribuição específica para atuar em resgates de vítimas de enchentes, os policiais civis, primeiramente, mobilizaram-se para ajudar nas operações de resgate, buscando barcos, botes, jet skis para poderem acessar as vias que já estavam tomadas por água, onde havia moradores e animais em risco de morte. Para fins de resgate, também foram utilizadas viaturas, um ônibus, duas embarcações e helicópteros da instituição. No que se refere a dados, foram resgatados 4.454 animais e 11.390 pessoas; houve 183 registros de óbito.

Em 7 de maio de 2024, o vice-governador, Gabriel Souza, instalou o Gabinete de Crise, criando um grupo de trabalho para atuar na coordenação da gestão da catástrofe ambiental que arruinava o Estado. Essa equipe era composta por políticos, iniciativa privada e servidores do Estado, inclusive da segurança pública (dez delegados e 20 agentes da Polícia Civil). Assim, vê-se que a Polícia Civil atuou na gestão da crise do desastre em tela, participando de todo o processo de análise de diagnósticos, planejamento, estratégias e execução de medidas para minorar os danos à população.

Policiais civis também auxiliaram na distribuição de mantimentos para os desabrigados, tendo sido presenças constantes no Centro de Distribuição da CEEE: trabalharam no recebimento, organização e transporte dos bens doados; além de atuarem na segurança – tanto de quem estava no local como em relação aos bens doados. Ademais, policiais civis fizeram a escolta dos voluntários que estavam atuando em resgates, na medida em que havia cidadãos que se aproveitavam da situação de vulnerabilidade e cometiam roubos de barcos e jet skis. Além disso, policiais civis também atuaram procedendo à escolta armada dos transportes de doações – quer para evitar furtos e desvios, quer para auxiliar no tráfego, abrindo passagem.

As investigações policiais relacionadas ao desastre natural foram priorizadas, como as que visavam à localização de pessoas que desapareceram.

Naquele período, foi registrado o desaparecimento de 352 pessoas, dentre as quais 260 foram localizadas com vida, e 65 identificadas em óbito.

Cumpre destacar investigações referentes a fake news e estelionato. Uma das práticas consistia na divulgação de contas bancárias e solicitação de doações, sob a falsa alegação de que o valor recolhido seria utilizado para reconstrução de casas ou compra de vestuário e alimentos. Então foi criada uma força-tarefa da Polícia Civil visando ao combate a fraudes, golpes e difusão de fake news. Como resultado, foram retiradas do ar quinze páginas criminosas, e bloqueadas ao menos cinco contas bancárias, o que impediu um enriquecimento ilícito de cerca de R$3 milhões por parte dos investigados. Também foram identificadas 35 postagens em redes sociais, que disseminavam conteúdo absolutamente falso, fantasioso e/ou ofensivo, causando desinformação na população e desencorajando os cidadãos a contribuírem para campanhas de arrecadação de mantimentos e valores. As postagens, que somavam cerca de 80 milhões de visualizações, foram excluídas das redes por ordem judicial a partir de representação de autoridade policial.

Nesse contexto, muitas vítimas precisavam fazer registro do boletim de ocorrência, mas não podiam ir até uma delegacia de polícia, até mesmo porque muitas delegacias tiveram suas estruturas seriamente atingidas, com alguns prédios ficando totalmente inacessíveis. Desse modo, incrementou-se o acesso às delegacias on-line: passou-se a disponibilizar serviço on-line para registro de danos causados pelas chuvas e de desaparecimento de pessoas durante as enchentes. Na página principal, também foram disponibilizados dois outros acessos para informar desaparecimento e localização de pessoas.

A partir do dia 8 de maio, teve início a realização de escalas de policiais para atuação nas rondas nos abrigos. Houve a determinação de uma operação-presença, de modo a aumentar a sensação de segurança nos abrigos, inibir a prática de crimes e proporcionar o conhecimento do que estava havendo nos abrigos para que se pudesse analisar a melhor forma de ação. Os policiais conversavam com os abrigados e com os voluntários, aferindo situações relativas à segurança, oferecendo orientações e auxílios pertinentes. Nesse panorama, a presença da polícia nos abrigos se fez bastante positiva, quer pela presença física naturalmente inibidora da prática de crimes, quer pelo acolhimento e tranquilidade que sentiam os voluntários com essa presença, quer pela sensação de segurança que se estabelecia entre os abrigados. Além disso, a presença da polícia nos abrigos, conversando com todos e verificando in loco os problemas e necessidades que surgiam, possibilitou vários diagnósticos e posteriores medidas para melhoria da situação.

Buscando-se dados sobre as ocorrências policiais registradas com base em fatos ocorridos em abrigos, aferiu-se que houve um total de 24 ocorrências no âmbito do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (quatro casos de estupro, quatro importunações sexuais, uma via de fato, três injúrias/ameaças, três fatos atípicos, uma lesão corporal, uma violência psicológica, uma perseguição, além de seis crimes de outras espécies). Desse montante, 16 ocorrências configuraram violência doméstica. Foram registrados, ainda, 45 casos de violência sexual em abrigos.

Desse modo, infere-se que a atuação da Polícia Civil em desastres ambientais é diversa, na medida em que precisa se fazer presente: na gestão da crise; na prevenção de saques e outros crimes; na priorização da investigação dos crimes relacionados à catástrofe; nos resgates; nos abrigos; na coordenação de doações.

A Polícia Civil enfrentou diversos desafios para atuar na enchente, entre os quais: ausência de comando (principalmente nos primeiros dias); ausência de protocolos para atuação; ausência de treinamento para resgates; falta de equipamentos adequados para resgates; limitação de pessoal; o fato de os próprios policiais, que atuavam além das suas atribuições e da sua carga horária, também estarem passando por angústias, privações e perdas semelhantes e iguais àquelas por que passavam as pessoas que resgatavam e cuidavam.

Diante do exposto, infere-se que várias medidas se fazem necessárias, a fim de que os policiais civis, em um novo desastre natural, possam estar mais bem preparados para cumprirem seu mister de servir e proteger a população, tais como: instauração de um gabinete permanente de gestão de crise na instituição; elaboração de protocolos para atuação em desastres naturais; treinamento dos policiais para resgates e atuação em abrigos; aquisição de equipamentos adequados para resgates. Dessa forma, creio que os policiais civis possam ter mais aptidão para atuarem, de modo mais eficiente, na garantia de importantes direitos humanos de todos os cidadãos e, em especial, na garantia do direito à segurança – ainda que em situação de desastre natural.

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