Apesar de reiteradas condenações internacionais em casos de violência policial, mortes decorrentes de intervenções policiais seguem elevadas
Há que se discutir estratégias para que o enfrentamento à violência do crime não seja reprodutor de inequidades raciais, geracionais e de gênero, bem como de situações intermináveis que geram confrontos e mortes
Samira Bueno
Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professora do Mestrado Profissional do IDP
Nos últimos anos o Estado Brasileiro foi condenado em diferentes ações internacionais em razão de episódios de violência envolvendo forças policiais. Em fevereiro de 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) proferiu a condenação relativa ao caso Favela Nova Brasília, que versa sobre a responsabilidade internacional do Estado pela violação do direito à vida e à integridade pessoal de 26 homens executados pela polícia e 3 mulheres vítimas de violência sexual durante operações policiais realizadas naquela comunidade, situada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em duas incursões nos anos de 1994 e 1995. Na sentença, a Corte declarou a responsabilidade do Estado brasileiro por não investigar os crimes e negar acesso à justiça às vítimas e familiares e determinou medidas de reparação e de não repetição que incluem a publicação e compilação de dados sobre mortes decorrentes de intervenções policiais, a investigação imparcial e independente de crimes cometidos por policiais e a participação das vítimas e familiares na investigação e em processos judiciais.
Em março de 2024 o Brasil sofreu novas condenações na CIDH. No caso Honorato vs Brasil, também conhecido como “Operação Castelinho”, episódio em que agentes do Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (GRADI) da Polícia Militar do Estado de São Paulo executaram 12 pessoas em uma rodovia no interior em março de 2022, o Estado brasileiro foi condenado a adotar medidas para implementação de dispositivos de geolocalização nas viaturas e fardas dos policiais, além da determinação de que todo policial envolvido em ação com resultado morte seja afastado temporariamente de sua função de policiamento ostensivo até que se determine sua reincorporação pela Corregedoria. Já no caso Antônio Tavares, o Estado Brasileiro foi condenado pela morte do camponês e pelos ferimentos causados a 185 integrantes do MST que sofreram repressão da polícia militar do estado do Paraná em maio de 2000. Na sentença, a Corte determina que o Estado brasileiro adeque seu ordenamento jurídico para impedir que a justiça militar julgue delitos cometidos por policiais militares contra civis.
Apesar das condenações listadas e das determinações previstas nas sentenças, o Brasil pouco avançou na implementação das medidas ou na responsabilização de agentes estatais envolvidos em ações letais. Desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador mortes decorrentes de intervenções policiais em território nacional, o crescimento no número de pessoas mortas foi de 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas no ano passado. Isso significa que 17 pessoas são mortas diariamente pelas forças policiais brasileiras em ocorrências que presumem o excludente de ilicitude, ou seja, que o agente estatal fez uso da força letal em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal/no exercício regular de direito.
Embora a elevada letalidade não seja um fenômeno característico de todas as forças policiais brasileiras, é possível afirmar que em pelo menos metade dos estados as mortes por intervenções policiais têm se mostrado um problema em anos recentes.
Em números absolutos, o estado que registrou o maior número de vítimas foi a Bahia, com 1.699 mortos em intervenções das duas polícias. Na segunda posição aparece o Rio de Janeiro, com 871 vítimas em intervenções policiais, e em terceiro lugar o Pará, com 525 mortes. No que diz respeito à taxa, método mais adequado para a comparação entre os entes federados, a maior taxa de mortalidade ocorreu no estado do Amapá, com 23,6 mortos por 100 mil, taxa 661% superior à média nacional, que foi de 3,1 mortes por 100 mil habitantes. A segunda maior taxa ocorreu no estado da Bahia, com 12 mortes por grupo de 100 mil habitantes, e na terceira colocação aparece o Sergipe, com 10,4 mortes por grupo de 100 mil. Goiás aparece na quarta posição com 7,3 mortes por 100 mil e o Pará na quinta posição, com 6,5 mortes por 100 mil. O Rio de Janeiro, historicamente entre os estados com as polícias mais letais, teve redução de 34,5% nas mortes entre 2022 e 2023, mas segue em sétimo lugar entre as polícias com maiores taxas de letalidade policial.
Também se destacam entre as reduções as polícias dos estados do Amazonas (-40,4%), Piauí (-35,9%), Maranhão (-34,7%), Paraná (-28,8%), Acre (-21,1%) Pará (-15,7%), Rio Grande do Norte (-14%), Minas Gerais (-8,1%), Ceará (-5,3%) e Goiás (-4,1%). Já os maiores crescimentos foram verificados no Mato Grosso do Sul (160,8%), Mato Grosso (104,6%) e Santa Catarina (79,5%).
Em 2023, 13,8% de todas as mortes violentas intencionais ocorreram em função de intervenções policiais, um indicador bastante elevado de uso da força. Internacionalmente, alguns parâmetros vêm sendo utilizados para mensurar o uso da força policial e verificar se há uso excessivo da força letal. Um dos indicadores é justamente a proporção de mortes provocadas pelas forças policiais em relação ao total de mortes violentas do território, um dado que tem por objetivo contextualizar a letalidade da polícia no cenário da violência urbana de modo geral (COSTA, 2004). De acordo com este critério, um território pode aparentemente ter muitos casos de letalidade provocada pelas polícias, mas, diante do total de homicídios, seu número pode ser pouco representativo. Ou, ao contrário, o número de mortes em decorrência de intervenções policiais pode aparentar ser baixo, mas corresponder a um elevado percentual do total de homicídios dolosos, indicando que há uso excessivo da força letal pela polícia local.
No Amapá, estado que registrou a taxa mais elevada, 33,7% de todas as mortes violentas intencionais foram provocadas pela polícia. O mesmo fenômeno foi verificado nos estados de Sergipe e Goiás, nos quais 1/3 da mortalidade do estado foi de responsabilidade das forças policiais, respectivamente 33,3% e 32,2%. Outros estados em que a proporção de mortes por intervenções policiais foi elevada em relação ao total de mortes violentas foram a Bahia, no qual 25,8% das MVI foram de autoria de policiais, Mato Grosso do Sul, onde essa proporção foi de 22,1%, e Rio de Janeiro, em que 20,4% foram de responsabilidade das polícias.
AS 10 CIDADES COM MAIORES TAXAS DE LETALIDADE POLICIAL
Desde 2018, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem coletado os microdados de todas as mortes violentas intencionais junto aos estados e ao DF. Isso significa que, no momento de elaboração deste Anuário, solicitamos às forças policiais e Secretarias de Segurança Pública e/ou Defesa Social todos os boletins de ocorrência de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, feminicídio e mortes decorrentes de intervenções policiais. A análise dos microdados dos boletins de ocorrência das mortes decorrentes de intervenções policiais permitiu a análise do perfil das vítimas bem como o cálculo da taxa municipal.
A relação das 10 cidades com mais de 100 mil habitantes com as maiores taxas de mortalidade por intervenções policiais segue abaixo. Na liderança aparece Jequié, no interior da Bahia, terceira cidade mais violenta do país em 2023, mas cuja taxa de MDIP chegou a 46,6 por 100 mil pessoas. Essa taxa é 1.380% superior à média nacional. Chama atenção ainda que, no ano passado, a maioria das mortes violentas da cidade foram de responsabilidade de agentes estatais (55,2%).
Na segunda posição aparece Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, com taxa de 42,4 mortes por 100 mil habitantes. Assim como em Jequié, a maioria das mortes violentas da cidade foi provocada pelas forças policiais: do total de vítimas, 63,4% foram mortas pelas polícias Civil e Militar. Em terceiro lugar aparece Macapá, capital do Amapá, que também consta da relação de dez cidades mais violentas do país no ano passado e registrou taxa de 29,1 por 100 mil mortos em intervenções policiais, 40,8% do total de MVI.
Eunápolis é a quarta cidade da lista com taxa de 29,0 por 100 mil, sendo que 41,3% do total de casos foram de autoria de policiais civis e/ou militares. Itabaiana, no interior do Sergipe, ocupa a quinta posição com taxa de mortalidade de 28 por 100 mil. Assim como em Jequié e em Angra dos Reis, a maioria das mortes na cidade foi provocada pela ação de policiais (63,0%).
Santana, no Amapá, que liderou o ranking das cidades mais violentas do país em 2023, ocupa a sexta posição entre as cidades com maiores taxas de letalidade policial, com 25,1 mortos por 100 mil. Na cidade da região metropolitana de Macapá, 1 em cada 4 mortes foi de autoria das forças policiais no ano passado (27,0%). Simões Filho, na Bahia, ocupa a sétima posição com taxa de 23,6, Salvador (BA) aparece em oitavo lugar com taxa de 18,9 por 100 mil, Lagarto (SE) em nona posição com taxa de 18,7 e Luís Eduardo Magalhães (BA) na décima posição, com taxa de mortalidade de 18,5 por 100 mil. Dentre as 10 cidades com maiores taxas de letalidade policial em 2023, cinco estão no estado da Bahia.
PERFIL DAS VÍTIMAS DA LETALIDADE POLICIAL NO BRASIL
Assim como em anos anteriores, analisamos os microdados dos boletins de ocorrência para verificar o perfil das vítimas de intervenções policiais no Brasil. Com a divulgação dos microdados do censo 2022 pelo IBGE, foi possível tecer análises mais precisas sobre a prevalência em diferentes grupos populacionais. No que diz respeito ao sexo, assim como em anos anteriores a quase totalidade das vítimas é de homens, com 99,3% dos casos.
A análise da taxa por sexo permite verificar a diferença na mortalidade entre homens e mulheres. Se a taxa média nacional foi de 3,2 mortes por 100 mil em 2023, entre homens chegou a 6,2 por 100 mil.
No que se refere à idade, adolescentes e jovens representam 71,7% das vítimas, percentual mais elevado do que entre as vítimas de homicídios, em que 47,4% das vítimas tinham até 29 anos. Na distribuição por grupo etário, 0,2% das vítimas tinham entre 0 e 11 anos, 6,7% entre 12 e 17 anos, 41,5% entre 18 e 24 anos e 23,5% entre 25 e 29 anos.
A taxa por faixa etária mostra que o grupo etário de 18 a 24 anos apresenta taxa de mortalidade 3 vezes superior à média nacional, atingindo 9,8 mortes por 100 mil. A segunda maior taxa ocorre entre o grupo de 25 a 29 anos, com 7,6 mortes por 100 mil e o terceiro grupo mais atingido é o da faixa de 30 a 34 anos, com taxa de 4,0 por 100 mil.
Além dos marcadores de gênero e idade, a raça/cor se mostrou um fator determinante nas diferenças de mortalidade por intervenções policiais no ano passado. Enquanto a taxa de mortalidade de pessoas brancas foi de 0,9 mortos para cada grupo de 100 mil pessoas brancas, a taxa de negros foi de 3,5 para cada grupo de 100 mil pessoas negras. Isso significa dizer que a taxa de mortalidade de pessoas negras em intervenções policiais é 289% superior à taxa verificada entre pessoas brancas, na evidência do viés racial nas abordagens e no uso da força das polícias brasileiras. Em relação à proporção, 82,7% das vítimas eram negras, 17% brancas, 0,2% indígenas e 0,1% amarelos.
A análise do local em que se deram as ocorrências mostra que a rua (via pública) segue sendo o local mais frequente para estas ocorrências. Em 19,5% dos registros apareceu residência como o local do suposto confronto, mas não é possível saber se o local era a residência da vítima ou se ela foi morta no interior de alguma residência.
Em resumo, os dados de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial revelam um cenário preocupante em relação ao padrão de uso da força pelas polícias brasileiras que, considerando as proporções entre tais mortes e as demais categorias que compõem o total de Mortes Violentas Intencionais em várias cidades do país, contraria o argumento utilizado de que as polícias “apenas reagem a injustas agressões dos criminosos”. Se em vários municípios brasileiros as MDIPs representam mais da metade das mortes violentas intencionais, há que se discutir estratégias para que o enfrentamento à violência do crime não seja reprodutor de inequidades raciais, geracionais e de gênero, bem como de situações intermináveis que geram confrontos e mortes.
* Este texto foi originalmente publicado na 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada em https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/