Política e Polícia 15/02/2023

Ainda as câmeras: outras variáveis

As câmeras e a preservação da disciplina e do profissionalismo

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

Lá pelos anos 90, em uma unidade de periferia da cidade de São Paulo (não vou precisar o ano, a unidade ou os atores envolvidos), ocorreu um incidente muito grave entre três guarnições da Polícia Militar. Eu era oficial da Divisão de Inteligência Criminal da 2ª Seção do Estado Maior (hoje Centro de Inteligência) e meu papel era acompanhar o crime organizado, quadrilhas mais bem estruturadas e o PCC.

Certa madrugada, um jovem tenente, patrulhando as ruas dessa unidade e rondando os componentes de seu pelotão, viu-se num quadro que se parecia um tanto quanto estranho. Numa região nas bordas da cidade, com baixíssimo IDH, carente, desprovida de vias asfaltadas, deprimida em termos de cidadania, o tenente e, se não estou enganado, um cabo e um soldado, depararam com outras duas guarnições, que totalizavam cinco policiais.

As duas guarnições queriam acobertar um flagrante por tráfico de drogas porque recebiam propina dos criminosos. Os cinco policiais queriam que o tenente e os dois policiais fossem embora sem nada fazer. O tenente, por sua vez, pretendia seguir com o flagrante. Mas, na cabeça dos cinco maus policiais, ficava, por certo, a indagação: “e se eles forem embora e nos denunciarem na sequência?”.

Os diálogos que se estabeleceram indicavam que os cinco policiais pretendiam, em última instancia, matar os três policiais, montar uma ocorrência de confronto e alegar que os três policiais tinham sido mortos por traficantes. Eles, os cinco policiais, teriam chegado no apoio, mas não teriam conseguido prender nenhum dos confrontantes.

Tudo bem preparado, não fosse uma variável que mostra a importância da força legal em qualquer condição. O tenente, à época, portava uma metralhadora (todas as viaturas de Comando de Força Patrulha, comandadas por tenente, possuíam armamento diferenciado e de maior potência e poder de fogo), o que desequilibrava o jogo. Ainda que fossem três contra cinco, a metralhadora desequilibrava o jogo a favor do tenente, que saiu do local ileso.

Não vou prosseguir aqui sobre o que aconteceu doravante, porque viraria uma novela. No Estado Democrático de Direito, tudo no processo depende de prova, naturalmente, e isso muda todo o quadro. Como oficial do Estado Maior, atuei fortemente no sentido de preservar os três policiais que ficaram ao lado da lei, da sociedade e contra o dinheiro fácil. Mas não são brigas fáceis.

Houvesse, à época, as câmeras, nada disso teria acontecido! Sabendo que o big brother estaria gravando e transmitindo tudo ao vivo, dificilmente aqueles cinco policiais, em lugar ermo, afastado da “civilização”, pobre e desordenado, teriam tido a ousadia de propor a divisão da propina e a ameaça a seu superior hierárquico, inclusive com insinuações de confronto com resultado morte de outros policiais militares.

Com o número atual de câmeras, houve redução de, aproximadamente, 61% de mortes resultantes de confrontos com policiais militares, em dois anos (comparativo 2022 e 2020). É o menor índice em quase 20 anos!

Atualmente, há cerca de 10 mil equipamentos em uso. São cerca de 66 batalhões que empregam as body cams. Há necessidade premente e urgente de ampliar esses equipamentos para toda a instituição.

Faço, aqui, meu reconhecimento ao governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que, de maneira firme e decidida, tem dado inequívocas declarações de que o programa das câmeras não será suspenso. Ele percebeu que a campanha acabou, que o bolsonarismo se entrincheirou numa vertente antidemocrática (já patente antes, mas agora de maneira inequívoca) e que não lhe resta muita outra alternativa a não ser se posicionar no espaço da centro-direita, mas de maneira civilizada e democrática.

O secretário da Segurança Pública, capitão Derrite, em situação mais delicada, dado seu passado e suas declarações enquanto deputado, também vem indicando, em suas mais recentes entrevistas e postagens, mudança de rumo. Derrite foi meu aluno na Academia do Barro Branco. É um moço inteligente e preparado. Tenho a real impressão de que ele, agora mais maduro, se arrependa do que disse e, eventualmente, do que fez. Entre a civilização e a barbárie, temos que ficar com a civilização.

O primeiro exercício de cargo executivo em sua curta carreira política lhe demonstra as agruras do cargo e a rudeza dos embates. Não deve estar sendo fácil para ele, ainda jovem e inexperiente, confrontar-se com a aspereza da real politik.

Tanto Tarcísio quanto Derrite precisam pavimentar seu futuro político se tiverem real interesse em prosperar politicamente em São Paulo. Se pretendem ocupar o espaço que outrora foi do PSDB, terão que, paulatinamente, mudar os rumos que trilharam em passado recente, até porque o bolsonarismo ficará restrito à extrema-direita. Ainda que São Paulo tenha uma robusta parcela de extrema-direita, ela, por si só, não será capaz de catapultá-los a voos mais longos. A população, como um todo, não é dada a esse tipo de exagero. Lembremo-nos de que, até os anos 90, PSTU e PSOL eram linhas internas do PT. Para assumir o poder, tiveram que se livrar dos “extremos” da esquerda do partido. Ainda antes, nos anos 80, o então PCBR também fora defenestrado (assalto ao Banco do Brasil de Salvador). Ficaram mais “palatáveis” para o eleitorado.

Neste contexto, o PSDB, por óbvio, vai deixando de ser uma alternativa real de possibilidade eleitoral para o povo paulista. Esse fenômeno se dá por várias razões: perda de líderes importantes do partido (Alckmin, Doria); falecimento natural de outras lideranças históricas (Goldman); avançada idade de líderes que formaram o PSDB (FHC, Serra, Aloysio Nunes Ferreira); perda de identidade (com a chegada de segmentos de extrema-direita no partido); esgarçamento das posturas ideológicas do partido ao longo dos últimos dez anos; ocupação de parte do espaço político que era do PSDB pelo PT; egoísmo em dar espaço para líderes mais jovens; e, por fim e decorrência de todo esse quadro, perda de importante espaço político-eleitoral no Estado de São Paulo.

Assim, dado o vazio ao centro e à direita, tanto Tarcísio, quanto Derrite, precisarão mudar de partido (dado que o Republicanos não tem a estatura deles e os abandonaram durante a eleição de 2022), talvez em direção ao PSD, que, por ser mais estruturado e enraizado no Estado, tenha melhores condições de oferecer ossatura para futuras empreitadas. Igualmente, o PSD não sujou as mãos com a vertente ditatorial, extremista e golpista do bolsonarismo.

Também precisarão estabelecer politicas públicas definidas, que lhes deem identidade e que não atentem contra os direitos e as garantias individuais.

Manter as câmeras é mais do que uma política civilizada e progressista. É uma questão de sobrevivência política. Se quiserem mais, terão que ampliar seu uso para a Polícia Civil, para os delegados, os escrivães e os atendentes que não estão em serviço de investigação. Não tenho visto nenhuma entidade tocar nesta questão. Mas ela precisa ser enfrentada. Neste debate não pode haver preconceitos. Apenas constatação de resultados.

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