Múltiplas Vozes 22/01/2025

Afinal, quanto custa a guerra às drogas?

Esse combate não conseguiu reduzir significativamente o uso de substâncias ilegais, mas consumiu, no mínimo, R$ 7,7 bilhões em apenas seis unidades da federação, além de acarretar consequências devastadoras às pessoas que residem nas áreas onde é travada

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Julita Lemgruber

Socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

Ignacio Cano

Professor da UERJ, membro do Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ) e consultor do projeto Drogas: quanto custa proibir

Ao longo do ano de 2024, o debate sobre cortes no orçamento do governo federal, e de como eles poderiam afetar áreas como saúde e educação, dominou o noticiário. Entretanto, num cenário de recursos escassos e escolhas orçamentárias dolorosas, ninguém pareceu lembrar do grande volume de recursos destinado a combater o tráfico e o consumo de algumas drogas. Em países como Brasil, México ou Colômbia, as medidas que o Estado adota para tentar impedir o tráfico e o consumo dessas substâncias constituem uma verdadeira “guerra”, com tiroteios constantes e uma abordagem militarizada da segurança pública para “combater” o narcotráfico. Essa guerra nunca conseguiu acabar com o consumo de substâncias ilegais, nem mesmo reduzi-lo significativamente, mas abarca recursos enormes e gera ainda consequências devastadoras para as populações residentes nas áreas onde é travada. Não por acaso, essas áreas são sempre pobres e, no Brasil, com alta presença da população negra. Ao contrário de resolver o problema, a guerra às drogas tem contribuído para aumentar a corrupção policial, expandir as redes criminosas a partir do encarceramento de jovens que acabam recrutados nas prisões pela criminalidade organizada, e incrementar a letalidade policial. Só no ano de 2023 as polícias mataram, no país, 6.393 pessoas.

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) tomou para si a responsabilidade de mensurar quanto custa a proibição das drogas e desenvolve desde 2019 o projeto “Drogas: quanto custa proibir”, que tenta estimar os impactos econômicos e sociais provocados pela proibição das drogas. O objetivo é mobilizar a cidadania na luta por uma política de drogas mais justa e mais humana, demonstrando o enorme desperdício de recursos públicos destinados a manter uma guerra que não pode ser vencida.

Ao longo desses anos, o CESeC produziu cinco relatórios[1] que demonstram os custos orçamentários, econômicos e humanos da proibição. O primeiro relatório se chamou  “Um tiro no pé”, e se propôs a estimar quanto custa a proibição para o Sistema de Justiça Criminal nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Ou seja, que parte dos orçamentos das polícias, do Ministério Público, do Judiciário, do sistema penitenciário e do sistema socioeducativo está destinada à aplicação da Lei de Drogas. Chegou-se ao valor de R$ 5,2 bilhões gastos em um ano para reprimir, investigar, processar, julgar e encarcerar pessoas pelos crimes previstos nessa legislação no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os alvos dessas atuações são, em sua grande maioria, homens jovens, negros e moradores de favelas e periferias.

Mas os custos gerados pela guerra às drogas não são apenas econômicos. No relatório “Tiros no futuro” verificou-se o impacto das operações policiais no Rio de Janeiro no desempenho escolar de crianças que convivem com tiroteios no entorno das suas escolas protagonizados por agentes de segurança pública. A partir de dados do Instituto Fogo Cruzado, foi possível estimar que 1.154 escolas do ensino fundamental carioca foram afetadas por pelo menos um tiroteio com envolvimento da polícia no ano de 2019. Comparando o desempenho acadêmico das crianças em escolas submetidas a esses tiroteios (com a participação de policiais) com o de crianças em escolas com semelhantes características socioeconômicas, mas sem tiroteios, foi possível estimar o impacto de tais operações policiais. Comparados às crianças de escolas públicas livres de operações, alunos matriculados em escolas com entorno violento (seis ou mais operações em um ano) perdem 64% do aprendizado em língua portuguesa esperado para o 5º ano. Em matemática, o impacto é ainda maior, pois todo o aprendizado esperado para esse ano letivo é anulado.

O projeto também se debruçou sobre o impacto das operações policiais na saúde dos moradores do Rio de Janeiro. O relatório “Saúde na Linha do Tiro” revelou que as mesmas operações que interrompem as aulas prejudicam também o funcionamento das unidades de saúde. Ao comparar dados de seis comunidades da cidade do Rio de Janeiro, semelhantes do ponto de vista socioeconômico, mas expostas a diferentes níveis de violência armada com a participação da polícia, identificou-se que os moradores afetados por essas operações têm mais chances de desenvolver hipertensão arterial, insônia prolongada, depressão e transtorno de ansiedade. Não deixa de ser uma triste ironia que os crimes relativos às drogas sejam classificados pelo código penal como “crimes contra a saúde pública”, apresentando assim a saúde como bem jurídico a ser protegido. Entretanto, na sua tentativa de, supostamente, preservar a saúde pública, o Estado acaba na realidade contribuindo para deteriorar a saúde dos cidadãos expostos a essas políticas.

Por outro lado, a vida quotidiana dos moradores de favelas e a economia local dessas áreas são, como caberia esperar, muito impactadas pelas operações policiais violentas. O relatório “Favelas na Mira do Tiro”, após pesquisar duas áreas particularmente conflagradas do Rio de Janeiro, mostrou que as frequentes operações policiais impediram 56,6% dos moradores de se deslocar em algum momento, 32,3% de comparecer a consultas médicas e 26% de estudar. Ao mesmo tempo, estabelecimentos comerciais são impedidos de funcionar plenamente durante esses eventos. E moradores têm suas casas e bens danificados por tiros, ficam sem luz, água e internet e a infraestrutura já precária nesses espaços é ainda mais danificada. Assim, essas operações policiais causaram um prejuízo estimado de R$ 14 milhões em um único ano para moradores dos complexos da Penha e de Manguinhos e uma perda de R$ 2,5 milhões para comerciantes e prestadores de serviço dessas duas áreas.

O último relatório, intitulado “Efeito Bumerangue”, estimou o custo da proibição para o sistema de justiça criminal, tal como no primeiro relatório (Um Tiro no Pé), estendendo essa estimativa para um maior número de unidades da federação: Bahia, Pará, Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Essas seis UFs consumiram nada menos do que R$ 7,7 bilhões para implementar a Lei de Drogas.

É importante enfatizar que muitos dos cálculos realizados no âmbito desse projeto estão subestimados, principalmente por dois motivos. O primeiro é que vários desses custos são intangíveis e muito difíceis de mensurar. O segundo é que as instituições nem sempre fornecem informações suficientes e confiáveis sobre o trabalho dedicado por seus profissionais para implementar a Lei de Drogas. No caso do trabalho das polícias militares há uma dificuldade adicional que contribui em muito para que o custo da proibição de determinadas drogas esteja subestimado: não se conhece o custo das operações policiais para promover a chamada “guerra às drogas”.

Por último, o trabalho realizado no âmbito do projeto “Drogas: quanto custa proibir” não incorpora os cálculos sobre o custo humano e econômico das pessoas mortas como consequência da guerra às drogas, que, mesmo sendo enorme, é difícil de estimar. O que o projeto de fato procura demonstrar é que a partir de uma reflexão sobre o custo-benefício da política de drogas no Brasil fica claro que a conta não fecha. O total de R$ 7,7 bilhões gastos em cinco estados e mais o Distrito Federal para promover uma guerra que não protege a saúde nem promove a segurança da população não se justifica sob qualquer perspectiva. São valores bilionários que poderiam ser utilizados em políticas mais eficazes em prevenir os riscos do uso de determinadas substâncias, tornadas ilícitas por questões ligadas ao racismo, como a história da proibição já demonstrou fartamente. Buscar uma política de drogas mais humana e baseada em evidências científicas, lutando contra um falso moralismo que contamina o debate, é o objetivo deste projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.

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