Academia e Polícia: desafios e potencialidades dessa interlocução
O incentivo para que os profissionais da segurança pública assumam mais espaço no cenário acadêmico parece fazer sentido. Sem dúvida, constitui uma potencialidade, por ser uma forma de qualificar e valorizar seu trabalho e, também, de levar ao conhecimento público questões complexas e exclusivas do universo da segurança pública
Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social – UFF, Cabo na PMMG e Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nas últimas décadas, acompanhando o cenário nacional quanto ao acesso da população aos cursos de nível superior, as instituições do campo da segurança pública de todo o país têm recebido, a cada ciclo de ingresso, profissionais mais bem qualificados. Em que pese que em alguns estados da federação ainda não haja a obrigatoriedade da comprovação de nível superior pelo/a candidato/a no ato da matrícula dos cursos de formação, acompanhando o conjunto de transformações sociais – o que inclui a busca pela estabilidade do emprego – o perfil desse público tem mudado.
Sob tal dinâmica, um dilema perceptível no corpo das instituições mantém-se pouco problematizado. Trata-se da demanda por interlocução entre o campo da segurança pública – aqui, destacando as polícias –, e o campo acadêmico pela via da exteriorização das experiências que caracterizam a atividade policial pela via, ainda tímida, da produção intelectual dos profissionais a ela associados. O que se consolida em monografias e artigos de opinião e/ou científicos, principalmente.
A mudança no perfil dos policiais produziu significativos desafios. Tomo aqui como ponto de partida o lugar de onde produzo o presente texto – policial militar, negra, atuante no interior de Minas ao mesmo tempo que pesquisadora, em continuado diálogo com a academia e canais fomentadores da produção do conhecimento. Essa é a razão pela qual percebi a necessidade de explanar o quão conflituosa se apresenta a relação entre os policiais e suas respectivas instituições, diante do anseio daqueles pela qualificação para além dos espaços de trabalho.
Assinalo aqui dois desafios impostos às estruturas institucionais. O primeiro diz respeito à resistência das corporações em compreender a potencialidade inerente ao interesse dos seus profissionais pela participação em cursos aparentemente desvinculados da natureza policial. Diante desse cenário, impõe-se ao interessado a habilidade de lidar com a falta de apoio institucional para o desenvolvimento dos seus estudos. Em que pese seja consenso em matéria de gerenciamento que em qualquer empresa – seja ela pública ou privada –, a presença de profissionais qualificados fortalece e legitima tais instituições à medida que a difusão do conhecimento adquirido pelo profissional dos seus quadros ocorre tanto no ambiente laboral interno quanto no externo, durante a prestação de serviços ou entrega de produtos. No caso das polícias, profissionais com múltiplas competências constituem influência direta no melhoramento da relação entre polícia e comunidade.
O segundo refere-se ao conflito de identidade do sujeito simbolicamente demandado – tanto pela academia, quanto pela polícia – a assumir posição unilateral, diante da condição de ocupação concomitante de ambos os espaços. Ora vê-se confrontado pela polícia para que assuma linguagem alinhada à política institucional, mesmo tendo ela a característica transitória, a depender das chefias/comandos. Ora vê-se confrontado pela academia, que evoca a teoria para justificar ruídos decorrentes da própria limitação de compreensão do recorte que se propuseram analisar. Por esse viés, inexistiria a possibilidade de complementaridade, o que demarcaria o princípio da intersetorialidade como recurso à compreensão dos processos e da implementação das políticas públicas.
Nesse contexto, que envolve preconceito bilateral combinado à ausência de diálogo, encontram-se, de um lado, pesquisadores-policiais ocupando espaços nas universidades. De outro, policiais-pesquisadores quebrando paradigmas ao incorporar às relações que envolvem o cotidiano de trabalho a perspectiva teórico-crítica.
Essa dupla condição fluiria bem se não houvesse por parte de ambos os setores – educação e segurança pública – resistência para acolher sujeitos duplamente experimentados e, portanto, dispostos a atuar – e capazes de fazê-lo – como mediadores ativos no esforço de aproximar mundos que parecem tão distantes na teoria, mas que, na prática, são desafiados, cada vez mais, a admitir sujeitos comuns – policiais/pesquisadores.
Como sabido, a maioria dos estudos destaca o comportamento policial externado ao público por meio dos procedimentos adotados nas intervenções, o que inclui índices de letalidade policial e excessos no uso da força, mas deixa de considerar questões fundamentais por não conseguir ter acesso ao que ocorre intramuros das instituições. Especialmente no que tange às condições de trabalho e à complexidade da natureza das atividades requeridas pelas polícias.
O incentivo para que os profissionais da segurança pública assumam mais espaço, também no cenário acadêmico, parece fazer sentido. Sem dúvidas, constitui uma potencialidade, à medida que é uma forma de qualificar e valorizar seu trabalho e também de levar ao conhecimento público questões complexas e exclusivas do universo da segurança pública, incomparáveis às questões experienciadas em outros setores.
No campo da segurança, a rotina é o incomum e constitui um dos motivos pelos quais os profissionais podem se ver limitados quanto à produção de registros sobre o trabalho. Afinal, a leitura, o estudo e a escrita exigem certo nível de disciplina ou destacada capacidade de aproveitamento dos períodos vagos, além de dedicação e identificação pessoal com a produção do conhecimento. É uma tarefa penosa diante da costumeira exaustão física e mental dos policiais de ponta de linha.
Sem falar que estudar processos resulta em análises que provocam reflexões, questionamentos e críticas, pouco ou nada bem-vindas em ambientes corporativos. O desafio é incentivar a ressignificação do ato de “colocar o dedo na ferida aberta que, por vezes, não cicatriza”, redirecionando o olhar para o caminho que se abre para o fortalecimento das instituições a partir do reconhecimento de que a mudança de posturas e formatos de atuação não significa a descaracterização das corporações ou uma derrota consentida. Pelo contrário, admitir que algo precisa mudar para que os resultados sejam melhores é mais do que ter visão prospectiva do cenário; evidencia a responsabilidade do gestor para com a coisa pública, seus pares, os recursos humanos sob sua autoridade e a população demandante dos serviços os quais estão sob suas competências.