A violência estrutural em uma sociedade desigual: o assassinato de Moïse Kabagambe
Seria esse um dos resultados padrões a se esperar de uma festejada reforma trabalhista incentivadora da negociação direta entre patrões e empregados em um país socialmente tão desigual e excludente quanto o Brasil?
Renato Zerbini Ribeiro Leão
Ph.D. em direito internacional e relações internacionais; Professor Titular do Centro Universitário de Brasília – CEUB; Membro do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU
A barbárie escancarou a sua presença sem nenhum tipo de constrangimento. O brutal, explícito, intencional e mortal espancamento do refugiado congolês Moïse Kabagambe em um quiosque na nobre orla carioca da Barra da Tijuca foi notícia nacional, adentrando na maioria dos lares brasileiros sem cerimônias, conspurcando o espírito da nação.
A violência é um fenômeno corriqueiro no Brasil. Dele derivam consequências múltiplas de matizes variadas e de impacto profundo na sociedade. Fatos como esse atroz assassinato tornam-se constantes, uma rotina com potencial de lhes conferir normalidade e aceitação social. O argumento da cordialidade brasileira consagra-se como ficção, alheio à realidade e avesso a quaisquer ética e moral que deveriam repousar no efetivamente real. Vive-se em um país supremamente violento, no qual parcela significativa da sua sociedade não possui ou perdeu a capacidade avaliativa fincada em premissas de afirmação da dignidade humana. Especialmente quando envolve pessoas pobres e em situação de vulnerabilidade, a brutalidade e a crueldade têm sido o padrão de comportamento dos distintos atores sociais: desde os marginais e foras da lei, como as milícias e o narcotráfico, até os próprios agentes públicos encarregados da segurança cidadã. No caso em tela, em que pesem as imagens abjetas, noticia-se a versão dos assassinos de que estes não teriam tido a intenção de matar Moïse. De outra parte, sua família alegou impossibilidade no acesso ao inquérito policial e a intimidação por policiais militares quando da busca de informações sobre o caso. A banalidade da violência se enrobustece no seio da sociedade brasileira. Dos poderes de Estado espera-se o óbvio mínimo dentro de suas obrigações constitucionais e no marco do devido processo legal: identificar, julgar e punir os responsáveis.
O ódio aos pobres, a aporofobia, consagra-se marca social indelével. A esta juntam-se o racismo e a xenofobia para envenenarem com futilidade, indignidade, perversidade e sadismo a morte de Moïse, que foi cobrar o seu salário atrasado de R$ 200,00. Para um refugiado, um estrangeiro com proteção especial garantida pelo Estado brasileiro, essa quantia representa uma diferença vital na garantia da sua dignidade humana. Tal brutal e infame acontecimento permite indagar se seria esse um dos resultados padrões a se esperar de uma festejada reforma trabalhista incentivadora da negociação direta entre patrões e empregados em um país socialmente tão desigual e excludente quanto o Brasil?
Esse assassinato catapulta uma realidade macabramente complexa, capaz de entrelaçar situações de banalidade, desigualdade, discriminação, isenção social, racismo e xenofobia convergentes entre si. No caso Moïse, as barreiras do idioma, a precariedade de sua relação trabalhista, o racismo, a xenofobia e a carência de políticas públicas para a inserção digna de refugiados acolhidos pelo Brasil conspiraram em prol da crueldade de sua morte como desfecho de sua estadia no país. Segundo levantamento feito pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), aqui o reconhecimento da condição de refugiado pode demorar anos. Nessa realidade, aproximadamente 1.400 congoleses ainda não têm registro de residência e seus ganhos médios no mercado de trabalho formal são de R$ 1.862,00. Esse valor é superior apenas à remuneração de R$ 1.696,00 dos haitianos. A média nacional salarial dos imigrantes é de R$ 4.874,00, sendo a dos africanos de R$ 2.698,00. Para efeitos comparativos, os portugueses percebem em média R$ 8.738,00 e os americanos R$ 22.425.
Os pilares da conjuntura que edificaram o assassinato de Moïse se potencializam em um ambiente de desigualdade estrutural, de vieses econômico e social extremos. Desde uma perspectiva ampla, segundo a CEPAL, tal desigualdade está conectada com o acesso a direitos, pois é um fenômeno que se manifesta no âmbito do vazio de direitos como educação, meio ambiente saudável, moradia adequada, não violência, saneamento básico, saúde, trabalho digno e bem remunerado. Todos estes são essenciais para o enfrentamento e a redução dessa desigualdade. Por sua vez, o eixo que determina a igualdade é a plena titularidade dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais sem nenhum tipo ou fator de discriminação, como nacionalidade, condição migratória, raça ou origem social. A desigualdade implica justamente que nem todas as pessoas exercem direitos fundamentais ante condições impeditivas estruturais.
Motivadas por uma esperança que sempre deve subsistir, ações estratégicas devem ser tomadas para o enfrentamento da violência em uma sociedade umbilicalmente tão desigual quanto a brasileira. O objetivo último é vencer a desigualdade estrutural. Para tanto, a aceitação desse fenômeno é ponto de partida inevitável. A identificação das suas raízes históricas e sociais, com o fito de traçar e executar políticas públicas capazes de resultados eficazes no seu combate, é imperiosa. No caso Moïse, o que se espera é justiça robusta. Um dever de toda sociedade brasileira para com ele e seus familiares.