Segurança Pública na Amazônia 30/08/2023

A violência de gênero e o Estado hipermasculinizado no Amazonas

Um breve recurso à história mostrará que a ocupação regional, persistentemente militarizada e atual, estabeleceu alicerces sobre o território e os corpos das mulheres amazônicas.

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Flávia Melo

Antropóloga pela Universidade Federal do Amazonas

Em julho passado, a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS) divulgou a ocorrência de 1292 partos de meninas entre 10 e 14 anos (jan/2021-mai/2023). Isso demonstra um alto índice de estupro de vulnerável no Amazonas, reiterado pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública (2023) no aumento de 51% dos registros desse crime em 2022. Ainda mais: demonstrou-se o crescimento extraordinário das notificações de violência doméstica (92%) e ameaças contra mulheres (64,4%) em comparação nacional.

Em 2013, a única edição de um Anuário Estatístico da Segurança Pública do Estado do Amazonas confirmava o que pesquisadoras amazonenses conhecemos há muito tempo: a escassez de dados sobre a vitimização feminina e a precária produção, sistematização e divulgação de informações públicas sobre o tema, principalmente do interior do estado, face aos empecilhos estruturais para a produção e transmissão de relatórios estatísticos. Esse cenário permanece inalterado, exceto por esforços locais, isolados e descontínuos, frequentemente ignorados, mesmo hoje, uma década depois, quando as atenções de governos, institutos de pesquisa e organizações privadas, nacionais e internacionais, se voltam à Amazônia com inusual interesse.

A ausência de dados públicos sobre as violências experimentadas por mulheres nos cursos de suas vidas pode estar associada a vários fatores. Em pesquisa realizada pelo Observatório da Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM/UFAM) entre 2012-2020 em 17 municípios amazonenses, constatamos dois conjuntos de problemas. O primeiro se refere à alternância, escassez de servidores e desvio funcional. Muitas delegacias dessas cidades foram (e ainda são) dirigidas por policiais militares ou civis que exerciam as atribuições de delegados, o que impacta na precisão de documentos policiais, como boletins de ocorrência (BO) e inquéritos (IP). Outro conjunto de problemas abrange os precários recursos materiais e infra-estrutura, o que faz com que os registros ainda sejam manuscritos em livros-ata.

No Brasil, estudos sobre violência de gênero se fundamentam, em geral, nas informações dos sistema de segurança pública oriundas de IP enviados à justiça criminal. Se e quando notificados, os crimes característicos desse tipo de violência percorrem um longo caminho de negociações que atravessam a produção desses documentos. Assim, o que descobrimos neles é apenas a parcela de crimes não retida no funil do sistema de justiça. Estudos baseados em IP acessam fontes mais completas. O uso de BO garante material vasto, irregular e pouco analisado face aos desafios à pesquisa: heterogeneidade de formulários, imprecisão e lacuna de informações, além de onerosa e morosa. Contudo, a investigação no interior amazonense revelou ser esta a principal e, muitas vezes, exclusiva fonte para a pesquisa sobre a vitimização feminina. Esses documentos nos permitiram conhecer os processos ordinários de produção de informações criminais; as dinâmicas locais constitutivas da formação social amazônica que sugerem novas abordagens à violência de gênero; e ampliar a nossa capacidade de compreensão desses fenômenos.

Na análise das informações coletadas em 2020 na cidade de São Gabriel da Cachoeira – a “cidade mais indígena do Brasil” – observamos igual repertório das violências de gênero e de problemas estrutural-institucionais; mas também elucidamos aspectos da relação das mulheres com as formas de presença do Estado naquelas margens da Amazônia, como a generalizada ausência de serviços especializados de proteção e intensiva presença militar.

Dos 2277 registros analisados, produzidos na última década (2010-2019), dois aspectos se sobressaem. Um deles é a classificação étnico-racial das pessoas envolvidas. Num município em que 93,2% da população é indígena, apenas 2% do registros informam o pertencimento étnico. Se considerarmos os aportes etnográficos sobre o tema e os abundantes relatos que todas escutamos de meninas e mulheres que vivem na cidade, facilmente concluímos que a omissão da variável étnica é um óbice ao entendimento mais refinado dessas violências. A mesma lacuna se nota no campo “ocupação do agressor”. Neste caso, dentre os registros com essa informação, 61% indicam a autoria de homens vinculados a instituições militarizadas e segurança privada, com porte legal de arma e oriundos de diferentes estados brasileiros.

Esses aspectos nos impõem recusar estereótipos que atribuem à “cultura” a explicação dos dados. Um breve recurso à história mostrará que ocupação regional, persistentemente militarizada e atual, estabeleceu alicerces sobre o território e os corpos das mulheres amazônicas. Urgem medidas para subsidiar informações de qualidade e, principalmente, elaborar protocolos para controlar a presença hipermasculinizada do Estado e sua incidência sobre os corpos-territórios onde o “braço forte” da Nação não costuma ter “mão amiga”.

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