Múltiplas Vozes 12/03/2025

A violência armada no Brasil: quando a política pública se omite diante do aumento de armas em circulação

O governo Lula, que iniciou seu terceiro mandato com uma proposta de controle do imenso arsenal em circulação, mudou o tom e ainda não apresentou soluções efetivas

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Terine Husek

Socióloga e Gerente de Pesquisa do Instituto Fogo Cruzado

Iris Rosa

Socióloga e Pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado

A análise dos dados sobre violência armada em 2024, elaborada pelo Instituto Fogo Cruzado e apresentada no relatório lançado no dia 19 de fevereiro, expõe uma situação crítica cujo denominador comum é o expressivo aumento do número de armas em circulação no país. Em 2024, nas quatro regiões metropolitanas monitoradas pelo instituto, Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Belém, ocorreram, ao menos, 6.769 tiroteios, resultando em 5.936 pessoas baleadas (4.104 mortas e 1.832 feridas). Esse dado reflete o impacto direto da combinação da flexibilização legislativa e da ausência de mecanismos efetivos de controle por parte do Poder Executivo.

No Rio de Janeiro, embora os registros gerais de violência armada tenham diminuído, ainda ocorreram, em média, sete tiroteios por dia, mantendo elevado o sentimento de insegurança. Alguns episódios emblemáticos revelam a gravidade da situação, como em outubro de 2024, quando uma operação policial desastrosa na principal via da capital, a Avenida Brasil, resultou em três trabalhadores mortos por balas perdidas. Esse episódio se repetiu em fevereiro de 2025, durante mais uma ação policial na região conhecida como Complexo de Israel. Daquela vez, duas pessoas que estavam dentro de um ônibus que passava pela via no momento da operação foram baleadas. A proporção de tiroteios em ação policial foi de 36% do total, mostrando que o alto poder bélico dos grupos armados, somado à política de segurança alicerçada em incursões nas comunidades, expõe diariamente a vida de milhares de pessoas.

A tragédia se agravou com a constatação de que a tendência de queda no número total de tiroteios não foi capaz de reduzir o número de crianças baleadas. Pelo contrário: em 2024, a Região Metropolitana do Rio bateu recorde na série histórica de crianças baleadas, totalizando 26 vítimas. Somado ao número de adolescentes, esse total chega a 64. Este contraste entre a redução dos tiroteios e o aumento da vitimização infantil chama a atenção para um ponto crucial: quando não há uma política focada na redução da violência para este público específico, nossas crianças continuam em risco.

GRÁFICO Evolução de tiroteios e crianças baleadas (2017–2024)

Em Pernambuco, a história é semelhante. Houve uma redução de 4% nas ocorrências registradas em Recife, em comparação a 2023. Mesmo assim, a região ainda mantém índices significativamente superiores aos registrados entre 2019 e 2022. Além disso, no último ano, o número de crianças e adolescentes mortos aumentou 25%. Foram 147 baleados nesta faixa etária, dos quais 101 morreram.

Ao analisar os registros de 2019 a 2024, o cenário fica ainda mais alarmante: foram registrados 735 casos de crianças e adolescentes baleados na Região Metropolitana do Recife, resultando em 467 mortes e 268 feridos. São centenas de famílias dilaceradas pela ausência de políticas eficientes para a prevenção da violência contra esse público.

Já na Bahia, as ações de agentes do estado seguem tendo protagonismo na violência armada. Os dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que a polícia, que ostenta o posto de mais letal do país, também é responsável por 38% dos tiroteios ocorridos na Região Metropolitana de Salvador. Em paralelo, um indicador antes pouco expressivo tornou-se relevante: os registros de “disparo de arma de fogo em brigas” aumentaram 31% em relação a 2023, evidenciando como a política de maior acesso às armas tem potencializado conflitos interpessoais.

Os dados sobre a vitimização de crianças e adolescentes também preocupam nesta região. Em 2024, houve registros de 63 crianças e adolescentes baleados, com um recorde de 14 vítimas somente em dezembro – o maior número mensal desde o início do monitoramento na Bahia. A violência armada vai além das vidas expostas: o direito à educação também é cerceado. Os dados do Fogo Cruzado mostram que 20% dos tiroteios ocorreram no entorno de escolas em horário letivo, afetando 327 unidades educacionais, com 349 pessoas baleadas naquelas áreas. Foram motivados por ações policiais 46% dos tiroteios registrados em um raio de até 300 metros de escolas.

Na Região Metropolitana de Belém, em seu primeiro ano completo de monitoramento, os dados reforçam um retrato nacional em que as vítimas em ações policiais representam uma parcela significativa dos baleados. A região apresentou o maior percentual de mortes relacionadas a ações policiais entre as áreas monitoradas: 41% do total de ocorrências, superando os números da Bahia e do Rio de Janeiro.

Os dados apresentados, infelizmente, não trazem grandes novidades: a ação policial continua sendo um dos principais motores da violência armada. Em 2024, apenas nas quatro regiões monitoradas pelo Instituto Fogo Cruzado, foram registradas 1.071 pessoas mortas e 707 feridas em ações policiais – uma média de cinco pessoas baleadas por dia. O cenário se agrava quando observamos os 85 casos de chacinas registrados, dos quais 59% ocorreram em ações policiais.

O governo Lula, que iniciou seu terceiro mandato com uma proposta de controle do imenso arsenal em circulação, mudou o tom e ainda não apresentou soluções efetivas. Enquanto isso, o Congresso Nacional não abriu mão da agenda armamentista, em prol da flexibilização das normas de controle de armas e munições. Essa força política se materializou no penúltimo dia do ano, quando o governo federal publicou o decreto 12.345/2024, que representa um alívio parcial em relação ao decreto anterior de julho de 2023, cedendo à pressão do grupo armamentista.

O resultado de tantos acordos é uma população insegura, que sobrevive à iminência de ser atingida por uma bala perdida, enquanto vê tantos outros direitos fundamentais não assegurados, impactando diretamente as possibilidades de vida de milhares de crianças e adolescentes. Nota-se que, em 2024, as escolas e as unidades de saúde também ficaram expostas a violência armada, com centenas de unidades tendo suas atividades interrompidas devido a tiroteios em seu entorno.

Já passou da hora de gestores públicos se responsabilizarem pelas vítimas diretas das ações de agentes do estado e executarem planos que tirem as armas de fogo das ruas, desenvolvendo mecanismos robustos de fiscalização e implementando medidas concretas para reduzir o número de armas em circulação. Esse seria um movimento de compromisso com a segurança pública e com a vida da população. A ausência de uma política de segurança efetiva continua cobrando seu preço mais alto, justamente daqueles que representam o futuro do país.

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