Múltiplas Vozes

A violência armada de Pernambuco tem solução

É fundamental que se invista em ações de inteligência para corrigir problemas como os da Polícia Civil do Pernambuco, onde faltam policiais e as delegacias até fecham mais cedo por falta de efetivo

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Cecília Olliveira

Diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, jornalista investigativa dedicada à cobertura do tráfico de drogas e de armas e da violência. Única finalista latino-americana do Prêmio Repórteres Sem Fronteiras para a Imprensa de 2020, que celebra vozes intrépidas e corajosas na mídia global

É preciso ir direto ao ponto: o número de mortes por armas de fogo está aumentando ano após ano na Região Metropolitana do Recife. Nem mesmo a pandemia, que esvaziou as ruas, foi capaz de conter esse crescimento. Aliás, a violência armada no Grande Recife tem um perfil bem particular: os crimes são cometidos fora e dentro de casa. É difícil escapar. No Relatório Anual do Instituto Fogo Cruzado de 2021, impressiona a quantidade de casos de pessoas baleadas nas próprias residências: foram 192 mortos e 55 feridos, 17% a mais do que em 2020, primeiro ano da pandemia – quando ficar em casa, ironicamente, era a estratégia para se ter mais segurança.

Os tiros disparados no Grande Recife têm alvo certo. Os casos de balas perdidas são raros, se comparados aos baleados em crimes com vítimas diretas, como assaltos e tentativas de assassinato. Para se ter ideia, 28 pessoas foram atingidas por balas perdidas em 2021; por roubos/tentativas e por homicídios/tentativas, este número é assustador: 1.760 baleados. É por isso, que apesar de o número de tiroteios ter se mantido estável entre 2020 e 2021 (cresceu somente 1%), o número de mortos aumentou (7%).

 

É importante perceber que, no município de Paulista, os disparos de armas de fogo vêm aumentando desde 2019. Paulista integrou, até abril de 2021, o projeto “Em Frente, Brasil”, da Força Nacional – programa tocado pelo Ministério da Justiça na cidade previa um reforço federal na segurança pública. Nossos dados mostram que não parece ter havido qualquer legado. O número de tiroteios durante ações/operações policiais subiu de 2, em 2020, para 13, em 2021.

O Cabo de Santo Agostinho, que ocupa a posição de segundo município com mais homicídios no Brasil, também sofreu com a violência armada, com direito a avisos de toque de recolher comandados por grupos armados. É no município que fica o bairro com o maior número de tiroteios em toda a Região Metropolitana do Recife. O distrito de Ponte dos Carvalhos foi o local com o maior número de baleados (47) em 2021.

Enquanto o Grande Recife alcança índices de violência armada maiores até do que os do período anterior à pandemia, o poder estadual não leva o contexto com a seriedade necessária. E, se o analisa, não se movimenta. Enquanto isso, lá em Brasília, o governo federal parece ter como política pública justamente o aumento da violência. Há aumento na circulação de armas, mas os mecanismos de fiscalização não acompanham esse movimento. O Recife é a prova de que, sem controle sobre as armas, não há limites para o crime. Até dentro do presídio ocorreram tiroteios – foram 4 no complexo prisional do Curado, que deixaram 4 mortos e outros 4 feridos. Como essas armas chegam lá? Pelas mãos de quem, que contam com quais olhos fechados?

Não há planejamento sério de combate à violência em um país onde policiais roubam armas da própria instituição e as revendem para o tráfico de drogas. Não é um filme de máfia. Aconteceu em Pernambuco. No ano passado, a polícia do estado descobriu uma verdadeira ‘Black Friday de armas‘: policiais desviavam armas, munições e acessórios, amparados pela falta de fiscalização. Pelo menos 326 armas de fogo foram desviadas, e depois vendidas por até R$ 6,5 mil. As submetralhadoras rendiam ainda mais e chegavam a custar R$ 22 mil. As armas iam para as mãos de traficantes, e depois eram disparadas contra a própria polícia que a forneceu. 

Com tantas armas e munições circulando por aí, quem sai todo dia de manhã para batalhar pelo pão de cada dia não tem certeza da volta. O relatório do Fogo Cruzado mostra que aumentou a violência armada contra trabalhadores informais, especialmente motoristas de aplicativo (43%), mototaxistas (18%) e vendedores ambulantes (40%). Além de serem vítimas da violência, muitos deles não têm qualquer auxílio das empresas para quem prestam serviço. Quem deveria garantir a segurança não o faz; quem deveria dar suporte, também não.

Há muito trabalho a ser feito no Brasil e em Pernambuco. Antes de tudo, precisamos entender em que maré estamos remando: há mais de uma década o Brasil não registrava tantas armas de fogo nas mãos da população comum. E isso não significa necessariamente mais segurança, já que a fiscalização e investimentos em investigação de desvios, roubos e furtos não foram feitos na mesma medida. É fundamental que se invista em ações de inteligência para corrigir problemas como os da Polícia Civil do Pernambuco, onde faltam policiais e as delegacias até fecham mais cedo por falta de efetivo. Sem delegados e menos mecanismos de controle, menos crimes são solucionados, e assim a violência nos engole ano após ano, como vimos nos dados do relatório. A solução não virá da brisa que sopra no litoral. É preciso descruzar os braços e parar de tratar a segurança pública com negacionismo. Este ano não pode ser como o que passou.

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