Múltiplas Vozes

A restrição ao voto como instrumento da expiação da culpa

É impossível olhar para o sistema prisional de nosso país sem olhar para a seletividade racial, o racismo estrutural e a perpetuação de uma sociedade colonial e escravocrata

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Pollyanna Bezerra Lima Alves

Bacharel em direito, especialização em direito penal econômico e europeu e mestrado internacional em economia internacional e globalização. Pesquisadora do Labgepen/UNB

O ano era 2018, eleitoral como o atual. Em outubro daquele ano, o Tribunal Superior Eleitoral noticiava que instalaria 220 seções eleitorais para a garantia de um dos direitos previstos em nossa Constituição Cidadã: a votação de presos(as) provisórios(as). A garantia do voto da pessoa presa provisoriamente está prevista no artigo 15, inciso III, da Constituição Federal de 1988, precisamente:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:(…) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

Nota-se, assim, que a cassação de direitos políticos fica restrita àquelas pessoas com condenação criminal transitada em julgado. Vale tal destaque porque muito já se avança nesse importante debate, qual seja: da garantia do direito ao voto àquelas pessoas condenadas.

O voto é uma importante ferramenta política para nos conceituar como cidadão(ã) partícipe das escolhas democráticas, efetivando nosso direito de cidadania nas urnas ao garantir o poder/dever da eleição de quem nos representará e lutará por políticas públicas eficientes e representativas que atendam os anseios sociais. De tal sorte, porque as pessoas condenadas podem ser compreendidas como “não cidadãos(ãs) em nossa sociedade atual? Ainda que essas não possam ser votadas, por que a elas também é retirado o direito de exigir políticas públicas que as representem? Quando é o Estado o responsável pela custódia das pessoas privadas de liberdade, não seria interessante poder votar pelos dirigentes desse mesmo Estado? Isso pensando nas assistências que devem ser prestadas dentro das prisões, na observância dos direitos humanos, sem falar no momento pós-soltura, que exigirá amparo das políticas sociais nessa sociedade violenta, racista e misógina, uma sociedade na qual a necropolítica impera.

SUFRÁGIO UNIVERSAL – UNIVERSAL PARA QUEM?

Importante compreender que para chegarmos ao sufrágio universal – ainda que tardio e não tão universal assim – muita luta se fez necessária. Negros, mulheres, pobres e analfabetos não tinham o direito ao voto em nosso país. Invisibilizados e segregados, compreendia-se que os votos deviam apenas contemplar os “homens bons”. E esse dado não pode ser apagado da nossa história, até porque ele segue se perpetuando – ainda que indiretamente – em nossos cárceres. É impossível olhar para o sistema prisional de nosso país sem olhar para a seletividade racial, o racismo estrutural e a perpetuação de uma sociedade colonial e escravocrata.

A historiadora do Tribunal Superior Eleitoral, Ane Ferrari Ramos Cajado, afirma que

a partir da abolição, em 1888, os negros passaram a poder, formalmente, participar do processo eleitoral, o que, na prática, não se efetivou em razão, por um lado, da proibição do voto do analfabeto e, por outro, em decorrência do conjunto de estigmas construídos em torno da identidade negra. Tais estigmas foram elaborados a partir de teorias cientificistas que enunciavam a inferioridade de determinadas raças frente a outras, a propensão natural de determinados grupos para o crime, a vinculação de determinadas doenças/epidemias a alguns grupos étnicos, entre outros.

Destaca-se também um olhar interseccional de gênero para as questões postas quanto à raça, vez que as mulheres enfrentaram a mesma batalha para a garantia do direito ao voto, luta essa que foi ainda mais árdua para as mulheres negras.

Ainda que a luta pela garantia do direito ao voto tenha sido vencida, um público segue enfrentando tais estigmas: as pessoas privadas de liberdade (tal qual nosso passado recente).

Inegável que uma alteração constitucional demandará anos de luta. No entanto, em pleno ano eleitoral, insta focar na legislação já posta, buscando compreender a sua não efetivação. Como Bobbio (2010) nos ensina: o ser e o dever ser [1].

A EXPIAÇÃO DO VOTO

A notícia mencionada acima apontava um balanço de presos provisórios que estariam aptos para exercer seu direito constitucional em 2018. Naquele ano, aproximadamente 12.000 (contando mesários e servidores desses estabelecimentos) sendo que nem todas as Unidades da Federação disponibilizaram seções eleitorais em unidades prisionais, como os estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Tocantins. De todos os lugares listados, Caraguatatuba/SP era a localidade que possuía o maior contingente de pessoas presas aptas ao voto: 224. Trata-se de um número irrisório no universo prisional, seja o paulista seja nacionalmente que, atualmente é de 820.689, segundo dados do DEPEN.

Entende-se por aptos aqueles(as) presos(as) provisórios(as) que possuem todos os documentos necessários para a votação, em especial destaque o título de eleitor. E aqui vale analisar dois fatores: o primeiro é que, ainda que se tenha uma legislação vigente, as unidades prisionais não se organizam para a emissão dos documentos necessários para o acesso às eleições. É módico o trabalho de porta de entrada que identifique quais documentos a pessoa presa, ainda que provisoriamente, não possui, e, ato seguinte, garanta sua emissão. Sendo, aproximadamente, 30% da população prisional provisória – e que muitos ficam nessa condição por longos anos- isso parece um acinte. E segundo; o fato de que alguns estados sequer instalam seções para a população provisória votar, ainda que preconizado pela Carta Maior.

Em um Estado de Coisas Inconstitucional, como são reconhecidas nossas unidades prisionais, o voto é mais um dos direitos violados à maior parte da população que lá se encontra: população negra. A não concessão dos documentos é uma ferramenta eficaz para a conceituação de “não cidadãos”, os quais não votam, não reclamam e não precisam ter direitos assegurados. Trata-se de uma condição perfeita para a perpetuação da desigualdade e a manutenção estatal da necropolítica.

RAZÕES PARA ESPERANÇAR

Em 2021, foi publicada a Resolução 23.659/2021. Este importante normativo vem regulamentar a emissão de título de eleitor para pessoas com condenação criminal que estão com o exercício dos direitos políticos suspensos. Espera-se que isso aumente o contingente de pessoas aptas para a votação.

É impossível tratar da cidadania sem que se faça uma leitura do passado e se atente para as violências do presente. Em um ano em que até grandes lanchonetes internacionais vem tentando sensibilizar quanto à importância do voto, seguimos almejando uma sociedade efetivamente democrática e igualitária e afirmando que a garantia do direito de votação a todes é mais que necessária, é urgente.

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