A recorrente urgência pelo direito à segurança pública no Brasil
É necessário compreender como os diferentes entes federativos podem contribuir para a garantia de direitos fundamentais, historicamente negligenciados para a população das favelas. Sem esse reconhecimento, dificilmente chegaremos a viver, de fato, num regime democrático de direito
Eliana Sousa Silva
Diretora da Redes da Maré
A atual crise em torno das políticas de segurança pública no Brasil não se configura como um fato pontual: é um processo escalar que vai tomando proporções e que parece não ter solução. O país possui problemas desafiadores relacionados ao enfrentamento de redes ilícitas e criminosas que incluem altas taxas de homicídios, assaltos, crimes violentos e tráfico de armas, dentre outras infrações, configurando um sentimento concreto de insegurança generalizada junto à população. Convivemos, e não é de hoje, com um sistema – que envolve as forças policiais e o Poder Judiciário – que nunca deu respostas adequadas e eficazes para este enorme problema que nos envergonha e angustia como nação.
As políticas públicas voltadas para a garantia do direito à segurança pública no Brasil têm privilegiado o uso da força e a guerra às drogas, métodos que têm se apresentado recorrentemente ineficientes. Quando olhamos para a ocupação das 16 favelas da Maré, no Rio de Janeiro, pelas Forças Armadas, por 14 meses, entre 2014 e 2015, é possível afirmar que o uso da força e o custo elevado da operação (R$ 1,2 milhão por dia, totalizando R$ 529 milhões ao final da ocupação) não foram capazes de reduzir a violência armada na região. Na verdade, tivemos como consequências diretas o aumento do poderio bélico e dos enfrentamentos dos grupos civis armados, não trazendo nenhuma mudança estruturante e efetiva.
O crime cresce e se espraia por vários estados do país. O estado do Rio de Janeiro é emblemático, numa perspectiva histórica, pelos acentuados e crescentes índices de violências e violações de direitos. A constatação, pelo Monitor da Violência, iniciativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, de que, de janeiro a junho de 2023, foram registrados 1.790 assassinatos no Rio de Janeiro, dá a dimensão do problema. É estarrecedor pensar que a cada dia 10 pessoas são assassinadas violentamente no estado, sem o pronunciamento e prestação de contas do Ministério Público Estadual no esclarecimento de muitos desses crimes.
Esse contexto de violências no Rio de Janeiro é explicado principalmente pela atuação de grupos criminosos armados que agem em áreas de favelas e periferias, justificando a resposta pautada pelo enfrentamento bélico, dada pelos governantes, com ações que se caracterizam pela falta de estratégia, ilegalidade e não reconhecimento do direito à segurança pública das populações que residem nessas áreas.
Uma amostra deste cenário pode ser identificada nas sete operações policiais, realizadas em um período de apenas 10 dias, em outubro, nas favelas da Maré, onde residem 140 mil pessoas. É fácil identificar que a motivação dessas incursões foi uma matéria veiculada em programa televisivo de grande repercussão, que mostrou o uso, por grupos criminosos armados, de uma área de lazer que deveria servir à população.
A resposta foram operações policiais conjuntas das polícias civil e militar, propaladas como inovadoras e estratégicas, com o objetivo de prender as mais de 1.200 pessoas identificadas nas investigações como integrantes de redes ilícitas e criminosas. A “Operação Maré” se apresentou como algo novo para um velho problema. Mas, na realidade, pouco se verificou de efetivo nessas ações até o momento.
A Redes da Maré, ONG que atua há mais de duas décadas nas favelas da Maré, monitora desde 2016 os efeitos das violências que ali acontecem, sobretudo as causadas pelo uso de armas de fogo, seja em operações policiais, seja por confrontos entre grupos civis armados. Dados do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré mostram que, de 2016 a 2022, ocorreram 219 operações policiais e 122 confrontos entre grupos civis armados na região, resultando em 135 dias sem atividades nas escolas e 153 dias sem atendimentos nas unidades de saúde do território. Apenas em 2023, as crianças e adolescentes já perderam 21 dias letivos de aula por conta de confrontos armados.
Na verdade, a “Operação Maré” não trouxe qualquer mudança no padrão histórico das intervenções policiais em favelas no Rio de Janeiro. Como sempre, a estratégia utilizada foi unicamente operações policiais violentas, com inúmeras violações de direitos, impactos profundos na vida dos moradores e desrespeito a regras estabelecidas pelo Poder Judiciário por meio da ACP da Maré e da ADPF 635.
Essas decisões definem a identificação e o uso de câmeras de vídeo nos uniformes dos profissionais de segurança pública durante as operações, respeito aos horários de aulas, presença de ambulâncias e não utilização dos “caveirões voadores”, helicópteros armados com fuzis que disparam a esmo nas favelas, causando verdadeiro terror entre os moradores.
É ainda de fundamental importância compreender como os diferentes entes federativos podem contribuir para a garantia de direitos fundamentais, historicamente negligenciados para a população das favelas. Sem esse reconhecimento, dificilmente chegaremos a viver, de fato, num regime democrático de direito. Da forma como está, nos vemos em labirintos e becos que não nos levam a uma passagem ou, mesmo, pontes as quais possamos atravessar e ver possíveis saídas.