Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social (UFF), cabo na PMMG e presidente do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Quase quatro de cada dez mulheres relataram ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Em 47,4% dos casos, a principal postura frente à agressão mais grave sofrida foi “não fazer nada”. Esses são alguns dos destaques sobre os achados de um conjunto de categorias analisadas sobre a violência contra as mulheres no Brasil no último ano. Sem rodeios, registrou-se, desde o início da série histórica, em 2017, o maior índice de violências perpetradas contra meninas e mulheres.
A publicação da 5ª edição da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil[1] ocorreu no primeiro dia útil o Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março. O estudo trouxe dados alarmantes sobre a realidade das mulheres brasileiras. A pesquisa foi elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto Datafolha, tendo como universo a população com 16 anos ou mais, de todas as classes sociais, localizadas em 126 municípios brasileiros, dentre aqueles de pequeno, médio e grande porte. O levantamento foi elaborado com uma amostra total de 2.007 entrevistas realizadas entre os dias 10 e 14 de fevereiro de 2025.
“[…] o Brasil é cada vez um país menos seguro para as mulheres”, afirmou Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, diante dos resultados apresentados. Nesse rumo, incrementado com outras interpretações sobre o avanço do fenômeno, a ideia da violência incorporada ao silêncio das relações, ano após ano, tem sido identificada e notificada, ainda que não oficialmente, pelas mulheres e pela sociedade geral.
Assim, pontos da pesquisa Visível e Invisível seguem alinhados aos dados divulgados no 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública[2] (2024), que evidenciaram crescimento dos registros oficiais de fatos associados à violência doméstica contra as mulheres no país. Como hipóteses, questiona-se, de um lado, se a violência contra as mulheres tem aumentado, e, de outro, se a difusão das informações sobre o assunto, associada a medidas de encorajamento das meninas e mulheres para o registro dos fatos, está colaborando para o aumento desses números.
Na análise do documento, subsidiada por estudos internacionais, não se trata tão somente de um crescimento das notificações motivada pela quebra de paradigmas voltados à naturalização de práticas violentas no âmbito das relações íntimas ou pela maior conscientização de meninas e mulheres frente aos seus direitos, mas, de fato, pelo aumento da prevalência das violências. O avanço dos feminicídios reforçaria tal hipótese.
Por outro lado, vale lembrar que violências precedentes aos crimes de feminicídio podem não ter sido registradas, o que indica o fator subnotificação, que encobre a realidade de violência contra a mulher, especialmente em cenários rurais. Ouso traçar um paralelo sobre o assunto, trazendo como exemplo um dos resultados apresentados na minha tese de doutorado, defendida em meados de 2023. No estudo, constato que, dos crimes de feminicídio íntimo registrados em um intervalo de cinco anos em municípios de base rural localizados na região nordeste de Minas Gerais, 86% não contavam com qualquer notificação oficial sobre violência precedente que anunciasse o risco pelo qual passavam aquelas vítimas, assassinadas, majoritariamente, por parceiros ou ex-parceiros. (CRUZ, 2023[3]). Ou seja, a expressiva maioria dos episódios era formada por casos de registro policial único.
A pesquisa Visível e Invisível destacou, em mais uma edição, que a casa/residência não constitui local seguro para meninas e mulheres. Em 57% dos casos, as violências mais graves ocorridas no último ano teriam tido lugar “em casa”. Os dados mostraram que quase 70% das violências cometidas contra elas foram provocadas por cônjuges/companheiros (40%) ou ex-cônjuges/ex-companheiros (26,8%). Nesse cenário, o levantamento ainda evidenciou que, em 92% dos casos, os episódios violentos foram testemunhados por amigos/conhecidos (47,3%), por filhos (27%), por outros parentes (12,4%) e apenas 7,7% por desconhecidos.
Decerto, cada um desses personagens elabora a seu modo a violência presenciada. No entanto, o grupo dos “filhos” demanda especial atenção. Isso porque estudos apontam as crianças como especialmente impactadas pelas vivências que as atravessam. Ainda mais quando se trata da experiência violenta sofrida por sua referência materna, o que pode ser tão prejudicial ao indivíduo que assiste quanto ao alvo das agressões. O estudo destacou que uma a cada quatro brasileiras sofreu violências diante dos seus filhos no último ano.
A vitimização das mulheres em razão do assédio sexual também é um elemento monitorado pela pesquisa. Nela observou-se que, nos últimos 12 meses, o assédio à mulher enquanto estava andando na rua representou 40,8% dos relatos; no ambiente de trabalho, 20,5%; em transporte coletivo, 15,3%. O estudo mostrou que a indicação de ter sofrido algum tipo de assédio alcançou 49,6% do universo da pesquisa, ao passo que, em 2017, essa marca era de 40,2%.
Na análise do perfil das vítimas constatou-se que 46,8% tinham idade entre 25 e 34 anos; 44% entre 35 e 44 anos e 44,9% entre 45 e 59 anos. Quanto às violências por nível de instrução, as mulheres com baixa escolaridade (ensino fundamental) foram as mais impactadas (45,5%), seguidas daquelas com ensino superior completo (41,7%). Observou-se que aquelas com baixa escolaridade sofreram mais violências físicas, enquanto aquelas com nível superior de escolaridade foram mais atingidas por violências verbais. A prevalência no fator raça/cor sinaliza as negras (soma de pretas e pardas), representando 41,9%.
O estudo abordou ainda os mecanismos de controle perpetrado pela parte autora da violência, o que envolve situações sofridas ao longo da vida, identificadas em mais 50,4% das respostas. O que envolve os elementos de menosprezo, humilhação, quebra de objetos, invasão de privacidade, ameaças, protagonismo das decisões, posturas que rebaixam a autoestima, dentre outros. Segundo a pesquisa, os episódios violentos ao longo da vida afetaram mais mulheres evangélicas (49,7%) do que católicas (44,3%); mulheres com filhos (51,7%) do que sem filhos (47,5%); mulheres separadas/divorciadas (60,9%) do que casadas (44,4%); e mulheres de municípios das capitais ou regiões metropolitanas (54,4%), do que as do interior (47,5%).
Em suma, o presente documento expõe informações capazes de dar subsídios, de forma alinhada à realidade, à formulação de políticas públicas para as mulheres e outras, direta ou indiretamente relacionadas. Ao longo do texto, alerta sobre a importância e necessidade da construção, estruturação e fortalecimento das redes de apoio às mulheres. Tais medidas, se por um lado colaboram para a redução das subnotificações, por outro oferecem às mulheres possibilidades reais, por meio de alternativas que as auxiliem na quebra do ciclo violento, aos moldes da estratégia do “Plano de Denúncia[4]”, exposto por aqui, em oportunidade anterior (Edição 136).