Múltiplas Vozes 17/11/2022

A PRF é muito maior do que sua atual gestão

É urgente fortalecer a compreensão de que a PRF é uma instituição do Estado Brasileiro e não do governo X ou Y, reforçando nos policiais o dever de separar suas preferências políticas individuais da obrigação de cumprir ordens legais

Compartilhe

Fabrício Rosa

Doutorando em direitos humanos pela UFG, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, oficial da reserva da PMGO e policial rodoviário federal

A quase centenária PRF é filha da Primeira República, representada pela figura do presidente Washington Luís, autor do lema: “governar é povoar, e povoar é construir estradas”, e do esforço por desenvolvimento do país, simbolizado pelo desejo de velocidade, pelos carros, caminhões, ônibus e pela indústria automobilística. Era 1928 e, no ano em que foi construída a primeira rodovia asfaltada do Brasil, que ligava sua então capital a Petrópolis, nascia a Polícia Rodoviária Federal.

As estradas são anteriores à república, claro. E a preocupação com segurança também. Desde o “Caminho do Peabiru”, trilha inca que ligava os Andes a São Paulo, à primeira rodovia macadamizada do Brasil (a Estrada União e Indústria), inaugurada em 1861 por Dom Pedro II, muitas vias foram construídas para escoamento de mercadorias com valor econômico e comunicação entre os povos. Na “Estrada do Caminho Novo”, nas Minas Gerais, no século XVIII, o policiamento era planejado e realizado pelo Alferes Tiradentes e seu Destacamento dos Dragões.

A PRF, que nasceu com o singelo nome “Polícia de Estradas”, foi em seguida integrada ao Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER), criado em 1937, e auxiliou na implementação do primeiro Código Nacional de Trânsito, de 1941. Passou por uma quase extinção nos anos 1960 e, durante a Constituinte, se mobilizou junto ao povo brasileiro, num exercício único de cidadania e participação popular, para conquistar assinaturas de 175.623 eleitores que pediam sua inclusão no rol das instituições de segurança na Constituição Federal de 1988. A partir de então, fortaleceu suas bases em todas as unidades federativas, atuando na proteção da segurança e da saúde das pessoas e garantindo a mobilidade de mais de 70% da riqueza nacional.

Atualmente, conta com um quadro de 13.275 servidores, entre policiais e agentes administrativos, distribuídos em quase 600 postos de trabalho espalhados nos 70 mil quilômetros de território viário federal. Hoje ela detém a maior estrutura física de um órgão da administração direta do governo federal e é dividida em unidades operacionais, os famosos “postos policiais” localizados nas rodovias federais, delegacias e superintendências administrativas, uma sede nacional – em Brasília, e uma universidade corporativa, que fica em Florianópolis.

Lamentavelmente, sua imagem de polícia republicana, filha do desenvolvimento e da participação cidadã, vem sendo abalada por episódios nacionalmente conhecidos. A partir de 2021, passou a colaborar diretamente, de modo inédito, em operações que resultaram em dezenas de mortes, realizadas fora de território de gestão federal, em comunidades do Rio de Janeiro e outras localidades. Essas atuações foram autorizadas por portarias da lavra de Ministros da Justiça indicados pelo governo Bolsonaro, cuja legalidade vem sendo questionada pelo Ministério Público Federal e outras entidades jurídicas.

Em maio de 2022, protagonizou, de maneira também incomum em sua história, uma cena que horrorizou os brasileiros. Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro diagnosticado com esquizofrenia, foi abordado por PRFs no estado de Sergipe, colocado no porta-malas de uma viatura policial e submetido à inalação de gás lacrimogênio emitido por um artefato atirado por policiais naquele ambiente confinado, o que o levou à morte.

No último mês, em outro controverso episódio, parece ter atuado com maior intensidade no domingo do segundo turno das eleições do que no dia seguinte, quando centenas de pontos foram bloqueados nas rodovias brasileiras, em atos antidemocráticos de caminhoneiros bolsonaristas. Segundo informação amplamente divulgada pela imprensa, no dia 28 de outubro, com um gasto de R$ 3,6 milhões, a PRF utilizou-se de efetivo formado por 4.341 policiais, grande parcela em serviço extra remunerado, para fiscalizar infrações de transito e crimes eleitorais, o que pode ter interferido no livre exercício do direito à participação política dos brasileiros, especialmente os da região Nordeste, pois acarretara medo em alguns que podem ter desistido de votar, já que utilizariam as rodovias federais para acessarem seus colégios eleitorais. De modo contraditório, no dia seguinte, com um gasto de R$ 970 mil, utilizou-se de contingente de 2.830 policiais para enfrentar os bloqueios perpetrados por grupos que não reconheciam o resultado das urnas ou pediam um novo golpe militar, ainda que esses atos tivessem divulgação anterior nas redes sociais.

Esses episódios apontam para a utilização política da instituição e alguns fatores são capazes de auxiliar na compreensão do protagonismo da instituição neste evento. A PRF, ao contrário das polícias estaduais, é controlada diretamente pelo presidente da República, que indica seu chefe maior e sua gestão superior. Além disso, convive diariamente com o ministro da Justiça, de quem recebe ordens quotidianas. Em igual sentido, por se tratar de uma eleição em nível federal, talvez a mais importante desde a redemocratização, a PRF, por ser a única instituição policial da União a lidar diretamente com as pessoas em trânsito (diferentemente da Polícia Federal e do Departamento Penitenciário Federal) pode ter sido instrumentalizada politicamente de modo mais intenso pelas forças políticas governamentais.

Como sabemos, a PRF experimentou uma gestão indicada pelo governo Bolsonaro, conhecido por sua nostalgia da ditadura militar e pela defesa de uma política criminal recrudescedora do sistema penal, com majoração das penas, redução da maioridade penal e ampliação da disponibilidade de armas de fogos. O que se viu na PRF ao longo dos últimos quatro anos foi uma ultramilitarização de seu modus operandi, contrariando seu caráter civil, evidenciada pela proliferação de “grupos especializados”, dentre outros sinais; uma formação policial autoritária, com redução da oferta de reflexões sobre direitos humanos, democracia, vulnerabilidades e desigualdades estruturais (como racismo, misoginia, lgbtfobia) e suas repercussões na segurança pública; fim das comissões internas de Direitos Humanos; centralização da governança, com redução do poder de decisão das administrações estaduais e locais; diminuição da atenção à segurança viária e da fiscalização de trânsito; maior “politização” na escolha dos superintendentes (chefes estaduais), algo que se sentia com menor intensidade em governos anteriores, até culminar no fato de o Diretor-Geral da corporação fazer campanha explícita para a reeleição do presidente. Tudo isso enquanto parcela do efetivo acreditava no “canto da sereia” presidencial que pregava aos quatro ventos que realizaria uma “reestruturação” da carreira, que nunca saiu. Pelo contrário, os policiais da União receberam uma pesada reforma da previdência, nenhuma reposição financeira das perdas inflacionárias durante os quatro últimos anos e tiveram que conviver com retiradas de direitos, como a redução da pensão para as viúvas e os viúvos de policiais mortos em serviço.

Mas a PRF é maior que esta momentânea gestão. Ela é formada majoritariamente por policiais corteses, honestos, comprometidos com um modelo de segurança cidadã, conscientes de seu lugar paradigmático enquanto modelo de polícia civil (desmilitarizada), de carreira única, federal, de nível superior, premiada na ONU por sua luta contra a exploração sexual contra crianças e adolescentes. Neste centenário de sua história, os melhores presentes que ela pode receber passam pelo resgate de sua dignidade e credibilidade historicamente construídas pelos “patrulheiros” e “patrulheiras” de outrora, que nos legaram uma força comprometida com os valores democráticos, os direitos humanos e a defesa da vida. Nesse sentido, é urgente fortalecer a compreensão de que a Polícia Rodoviária Federal é uma instituição do Estado Brasileiro e não do governo X ou Y, reforçando nos policiais o dever de separar suas preferências políticas individuais da obrigação de cumprir ordens legais; repensar a governança, nomeando uma alta administração composta por policiais de carreira e “ficha limpa”, com formação técnica e comprometidos com a defesa da ordem democrática; incentivar mecanismos de controle internos e externos com participação popular; responsabilizar aqueles que tentarem instrumentalizar a polícia para fins golpistas, agindo, de todo modo, sem revanchismo, perseguições pessoais ou “caça às bruxas”; reorientar a formação para um viés humanizado, realizando especial atualização dos servidores que ingressaram nos últimos quatro anos, que compreendem 30% do efetivo total; valorizar a defesa da vida em sua plenitude, fortalecendo, por exemplo, áreas abandonadas pela gestão Bolsonaro, como as que atuam no combate a crimes ambientais e contra crimes como os de trabalho escravo, trabalho infantil e tráfico de pessoas; e reorientar o policiamento em prol de maior segurança viária, considerando que a redução da fiscalização no trânsito, atacada pela gestão Bolsonaro (que transitava em motocicletas sem dispositivos de segurança, pregava contra o emprego de radares e contra o uso de “cadeirinhas”) culminou no incremento no número de acidentes. Entre 2020 e 2021, por exemplo, o número de acidentes subiu de 63.447 para 64.452, e o número de vidas perdidas nas rodovias federais, de 5.287 para 5.391.

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES