A prática policial e o custo do heroísmo: reflexões sobre acidentes de trânsito em serviço
A morte de policiais não pode continuar a ser romantizada como ato de bravura ou decorrência natural da profissão. É necessário romper a lógica do heroísmo e substituir o culto à exposição ao perigo pelo compromisso com a vida do policial e da população
Floriano Cathalá L. Neto
Mestrando em Segurança, Desenvolvimento e Defesa (ESD), especialista em Altos Estudos de Defesa (ESD) e em Transparencia, Accountability y Lucha Contra la Corrupción (U. de Chile) e em Direito Militar (UNEB)
A atividade policial é, por natureza, uma atividade de risco. No entanto, alguns casos demonstram que, por vezes, os próprios policiais exasperam o risco a que estão expostos, sem justificativa para tal, o que é aceito e até fomentado pelas corporações. Parece ser o caso do acidente envolvendo policiais rodoviários federais no último dia 18 (Henrique e Pontes, 2025). Numa perseguição a motociclistas sem capacete que furaram barreira policial, o condutor de viatura da PRF perdeu o controle do carro, que colidiu com outro e capotou várias vezes. Testemunhas relataram que quatro policiais foram arremessados da viatura, o que sugere o não uso do cinto de segurança. Mais do que levar ao luto e à solidariedade com as famílias e colegas, o caso é ilustrativo de algo que demanda reflexão: três PRFs morreram; outro PRF e três civis sofreram ferimentos por causa de meras infrações de trânsito, puníveis apenas com multa e apreensão dos veículos.
Os riscos da profissão policial não decorrem apenas do enfrentamento à criminalidade, mas também de uma cultura organizacional que glorifica a força e a morte heroica e que marginaliza a prudência e a correta aplicação das técnicas policiais, comumente tachadas como “medo”. Para Mello (2021), o risco inerente à atividade policial pode (e deve) ser mitigado pela atitude do policial, por meio de equipamentos de proteção (como o cinto de segurança), pela prudência e pela adoção de comportamentos seguros. No entanto, diversos estudos indicam que a cultura organizacional empurra os policiais na direção oposta, a da exposição desmedida ao risco, como ilustrado até nas canções institucionais: “ser policial é, sobretudo, uma razão de ser, é enfrentar a morte, mostrar-se um forte no que acontecer” (Canção da PMERJ); e “(…) para os campos da morte marchando, nós iremos sem mágoa ou pesar (…) e até mesmo que a morte nos caiba, saberemos com honra morrer, de maneira que a pátria bem saiba que cumprimos o nosso dever” (Canção da PMDF).
Nesse contexto, Mattos (2012) detalhou a exaltação de policiais que se expõem ao risco e revelou os rótulos que policiais colam nos colegas durante a construção de suas identidades, delineando a oposição entre os “vibradores” e os “encagaçados”, como se evitar riscos desnecessários fosse sinônimo de covardia. Lustosa e Gonçalves (2017) reafirmam essa ode à coragem irresponsável ao apontarem que a ênfase dada pela corporação à prontidão e à infalibilidade pode levar os policiais à exposição a situações perigosas, mesmo quando desnecessário, buscando atender a uma imagem idealizada de um super-homem.
O acidente que vitimou os três PRFs e essa síndrome de super-herói me trouxeram à lembrança um dos momentos mais tristes de minha passagem pela PMDF: era véspera de natal de 2000, quando fui acionado para atender a um acidente de trânsito no centro de Brasília. No local, duas viaturas da PCDF avançaram o sinal fechado em altíssima velocidade, porém um ônibus cruzou a via (com sinal verde para si) colidiu com as viaturas. Dois policiais morreram instantaneamente e um terceiro, no dia seguinte. Outros tiveram ferimentos graves e ao menos um deles acabou aposentado em decorrência das lesões. O motivo daquele deslocamento urgentíssimo? Apoiar colegas a 24 quilômetros de distância, no presídio da Papuda, onde já havia efetivos da própria PCDF, à época encarregada da custódia prisional, e da PMDF, encarregada da guarda externa do presídio (o acidente ocorreu com menos de 6Km percorridos). Urgente? Talvez. Valia a pena colocar em risco as próprias vidas e as de terceiros? É de se refletir a respeito. Por mais que a profissão nos acostume a lidar com a morte, é sempre muito doloroso vê-la alcançar irmãos de armas. O quadro piora quando se presenciam outros colegas e até familiares chegarem ao local e verem seus entes queridos destroçados na tentativa de corresponder às expectativas que a corporação, erroneamente, deposita sobre eles. Após 25 anos, pouco se aprendeu, pouco mudou e casos semelhantes continuam vitimando policiais.
Embora não haja dados nacionalmente consolidados, existem estudos esparsos a confirmar o acidente de trânsito como uma das principais causas de mortes de policiais em serviço, quando não a principal. Na galeria de mortos em serviço da PCDF, dos 46 policiais que perderam a vida em ação de 1960 a 2025, 19 morreram em acidentes de trânsito (41,3% do total), maior causa de fatalidades em serviço na PCDF. Na Brigada Militar do RS, de 2006 a 2016, o índice é semelhante, 41% (Limeira e Donato, 2019). No âmbito da PRF, a maior incidência de mortes de policiais em serviço, de 2001 a 2020, deveu-se a acidentes de trânsito, com 28,7% das ocorrências (Marins et. al, 2022). No RJ, de 1994 a 1996, 20,4% das mortes de policiais em serviço decorreram de acidentes de trânsito, segunda causa mais frequente (Souza e Minayo, 2005).
Mello (2021) aponta três causas como como as principais: i. a não utilização do cinto de segurança, o que é generalizado e publicamente admitido entre policiais, além de negligenciado pelos comandos; ii. a manutenção inadequada das viaturas e das vias; e iii. a falta de treinamento para as condições especialíssimas em que viaturas policiais são conduzidas. A esses fatores, com amparo nos estudos mencionados, agregamos e apontamos como, talvez, a principal causa, iv. a cultura organizacional das polícias, que leva o policial a se expor a riscos desnecessários e evitáveis, em nome de um heroísmo fantasioso.
Nesse contexto, casos como o da PRF e tantos outros que têm se tornado cotidianos nas polícias não são meras fatalidades, mas o reflexo trágico de uma cultura institucional que precisa ser mais bem estudada e repensada. A morte de policiais não pode continuar a ser romantizada como ato de bravura ou decorrência natural da profissão. É necessário romper a lógica do heroísmo e substituir o culto à exposição ao perigo pelo compromisso com a vida – a do policial e a da população. Isso implica fomentar estudos, revisar práticas operacionais, investir em treinamento, mas, sobretudo, impõe desconstruir a naturalização da morte como parte integrante do ofício. Ser policial exige, sim, coragem, mas ser operacional e vibrador exige, sobretudo, retornar vivo e íntegro ao final do turno de serviço para que se possa, nos dias e anos seguintes, prosseguir no cumprimento de tão essencial função pública.