“A Polícia prende e a Justiça solta”: o falso paradoxo entre as audiências de custódia e o trabalho policial
A expressão, frequentemente empregada para desacreditar as audiências de custódia e exaltar as prisões executadas pelos agentes de segurança, não retrata a realidade, mas serve muito bem para lançar cortina de fumaça sobre a escassa capacidade estatal para articular segurança pública e justiça criminal
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
As audiências de custódia estão em vigência há quase uma década no Brasil. Nesse período, foram realizadas 1.722.680 audiências, sendo 1.311.135 decorrentes de prisões em flagrante, conforme dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) até setembro de 2024[i]. Destaca-se que cerca de 45% das audiências realizadas por prisões em flagrante resultaram na liberdade dos acusados. Essa situação gera conflitos entre o propósito das audiências de custódia e o trabalho das polícias, pois há a narrativa de que “a polícia prende e a Justiça solta”.
A afirmação que o Judiciário continuamente derroga as prisões realizadas pelas polícias ecoa no campo policial mais conservador, nos meios de comunicações sensacionalistas e nas redes sociais policialescas. Nesse universo, predomina uma crença: as audiências de custódia favorecem a impunidade e obstaculizam a atividade policial. Assim, o instituto da Audiência de Custódia é taxativamente deslegitimado pelos advogados do punitivismo penal.
Por sua vez, o objetivo elementar das audiências de custódia é assegurar que pessoas presas sejam apresentadas a um juiz, que irá analisar o procedimento sob aspectos da legalidade e da regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão; ou ainda, se for o caso, da aplicação de alguma medida cautelar. Ademais, avalia possíveis casos de tortura ou de maus-tratos na execução de prisões efetuada pelas polícias. Esse procedimento visa garantir direitos de pessoas presas, bem como dispor prisões à luz do aparato legal.
Mesmo sob ataque, as audiências de custódia são realidades expressas em normas, jurisprudências, doutrinas, rotinas do sistema de justiça criminal. Elas surgem num contexto de críticas ao irrestrito poder incriminador do Estado, aos excessos da aplicação da lei penal, ao aprisionamento em massa. Daí, no ordenamento jurídico brasileiro foi se consolidando o pressuposto de que a liberdade é a regra, enquanto a prisão, a exceção. Com efeito, as audiências de custódia também serviriam para racionalização do aprisionamento.
Contudo, apesar das audiências de custódia, a população carcerária permanece em crescimento. Ora, entre 2015 e 2023, o que corresponde justamente ao período de vigência delas, o contingente de pessoas encarceradas passou de 698.618 para 852.010, aumento de 22%, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança (2024)[ii]. Com isso, o país ostenta a terceira maior população prisional do mundo[iii].
Porém, a evolução do aprisionamento no Brasil poderia ser mais drástica, caso as audiências custódias inexistissem. Esse instituto, por promover a responsabilidade na aplicação da prisão, pode ter impedido que a população carcerária aumentasse descontroladamente. Ora, numa análise confractual, sem as aludidas audiências, só em 2023 o país teria mais 132 mil encarcerados provisórios, isso só considerando o total de liberdades concedidas no período decorrentes de casos em flagrante[iv].
De todo modo, dados do CNJ sobre audiências de custódia em nível nacional, entre 2015 e 2023, demostram que cerca de 55% dos procedimentos em fragrantes resultaram na conversão de prisão preventiva. Ademais, dados gerais apontam que a população prisional cresce de forma ininterrupta ao longo dos anos. Desse modo, a prisão ainda é predominante. Então a afirmação de que a polícia prende e a Justiça solta, como sendo forma de descaracterização da punição prisão, não encontra tanto lastro nas evidências.
Na verdade, a opinião de que as polícias prendem de um lado e o Judiciário liberta do outro é movida mais pela narrativa punitivista do que qualquer apreciação em números. Além do mais, ela é fruto do fascínio nutrido pela prisão, haja vista o sofrimento que as degradantes condições dos estabelecimentos prisionais podem causar aos apenados. Daí a justiça é feita quando as polícias prendem. Por outro lado, ocorrem injustiças e impunidades quando o Judiciário concede liberdade provisória aos acusados.
Nesse contexto, medidas cautelares e outras restrições impostas em audiências de custódia são depreciadas como meios de punição estatal. Se as medidas alternativas carecem de efetividade, é outra história que só reforça o apelo à prisão. De todo modo, o instituto da Audiência de Custódia não é outra jaboticaba, mas hoje é instância imprescindível para regularidade de prisões, sobretudo em flagrantes. Nisso, vale destacar que o trabalho policial não é desconstituído, mas, ao contrário, pode ser convalidado, seja pela manutenção das prisões, aplicação de outras penalidades ou verificação de possíveis condutas ilegais de policiais.
Com efeito, a expressão “a polícia prende e a Justiça solta”, frequentemente exposto para desacreditar as audiências de custódia e exaltar as prisões executadas pelas polícias, não retrata a realidade, contudo, serve muito bem para lançar cortina de fumaça sobre o dilema da escassa capacidade estatal em articular segurança pública e justiça criminal. Esse é um paradoxo que não cabe num jogo de palavras.